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PADRE CÍCERO REABILITADO

1.° de março de 1899. Juazeiro, Ceará:

Vaticano se reconcilia com padre Cícero - Vaticano - ANSA Brasil 


“Nós todos aqui, na maior aflição, desenganados do inverno, (...) faziam-se romarias, preces, novenas e mais novenas, orava-se pública e particularmente muito, porque a aflição de todos era imensa, tendo cada um o justo temor dos horrores da seca. Chegou a primeira sexta-feira do mês de março da quaresma deste ano, eu chamo a toda a irmandade, como de costume, para a comunhão reparadora do mês (...) uma comunhão reparadora grande ao Sagrado Coração, segundo sua divina intenção. (...) Passei toda a noite confessando homens, na igreja, aonde passavam também orando, seis ou oito mulheres que faziam parte da irmandade; com pena delas, interrompi o trabalho, fui despachá-las, dando-lhes a comunhão, das quatro e meia para as cinco horas, antes dos outros”.

Uma carta a seu bispo, dom Joaquim Vieira, de sete de janeiro de 1890, padre Cícero Romão Baptista, depois de assim descrever o cenário onde tudo aconteceria, relata os fenômenos de que foi testemunha, envolvendo a beata Maria Araújo, uma daquelas “seis ou oito mulheres!”, a quem na madrugada, depois de uma noite em oração, ele, penalizado, deu a comunhão. Quando Maria Araújo recebeu a “sagrada forma”, logo esta se transformou em porção de sangue. Após colocar a âmbula no Sacrário, voltando-se, padre Cícero se depara com Maria Araújo “cheia de aflição e vexame de morte, trazendo a toalha dobrada (por onde correu o sangue) para que não vissem”.

Conhecendo “a sinceridade e simplicidade dessa criatura, a confusão e o vexame com que estava, nem sequer eu tinha dúvida da verdade que via”, Padre Cícero relata as providências que tomou, procurando justificar-se por não ter, no tempo certo, comunicado ao bispo, como devia. A notícia, entretanto, espalhara-se pelo sertão, trazendo milhares de pessoas em romaria a Juazeiro do Norte. Conta padre Cícero, nessa carta, que “... chove de toda parte um aluvião de gente, que tudo quer se confessar, e contritos deveras, (...) famílias e mais famílias, uns a cavalo, outros a pé, com verdadeiro espírito de penitência quanta gente ruim se convertendo”.

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A condenação

Nasceu ali um dos mais longos dramas vividos pela Igreja no Brasil. Dom Joaquim Vieira instituiu uma comissão formada por dois padres para averiguar os acontecimentos. O resultado dessa missão não lhe agradou, designando novos sacerdotes para continuarem a investigação. O novo relatório, contrário ao primeiro, criou uma animosidade jamais superada. Enquanto o bispo mais e mais se posicionava contra as romarias que se multiplicavam em Juazeiro do Norte, elas atraíam gente de todo o nordeste, que encontrava na devoção a Nossa Senhora das Dores e nos sermões e conselhos de padre Cícero uma nova motivação para sua piedade. Padre Cícero, exortado a negar os fenômenos, alegou motivo de consciência para não fazê-lo, oferecendo-se para obsequioso silêncio.


Dom Joaquim Vieira o suspende das faculdades de pregar, confessar e administrar qualquer sacramento. Faz-se recurso à Santa Sé, em petição levada pelo sacerdote que secretariara a primeira comissão. Um longo processo se arrasta e, nele, o padre Cícero é proibido de celebrar a missa, vivendo na espera de uma reconsideração por 38 anos. Morre em 1934, sem alcançá-la. Nesse tempo, como simples leigo, recebe diariamente a comunhão na Igreja onde fora pároco e, como conselheiro, acolhe os romeiros que, de forma crescente, buscam Nossa Senhora das Dores. Juazeiro do Norte, de simples vila vai se tornando uma grande cidade e padre Cícero, seu líder civil e religioso.

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Os romeiros

A morte do padre e a falta de reconhecimento por parte da hierarquia não arrefeceram a devoção daqueles que, ao longo do século, ficaram conhecidos como “os romeiros do padre Cícero”. Em número sempre crescente, esses romeiros estão presentes em todo o nordeste, além de outros, espalhados pelo Brasil por causa das migrações. Nas festas dedicadas a Nossa Senhora das Dores e das Candeias, no Dia de Finados e, em número mais reduzido, em todos os dias do ano, esses romeiros, cerca de dois milhões por ano, acorrem a Juazeiro do Norte para um ritual onde, além de buscarem a confissão e a comunhão, visitam as igrejas de Nossa Senhora das Dores, do Sagrado Coração de Jesus e os lugares próprios do padre Cícero, como a Capela do Socorro, onde está sepultado, sua casa e o horto, onde fazia seus retiros.

Esse povo encontrou, na devoção e na prática das romarias, o vigor para resguardar sua identidade cultural e religiosa ao longo de um século, no qual se acentuaram a degradação e a perda das referências culturais das comunidades. Em recente estudo sobre o trânsito religioso nas últimas décadas, verificou-se, na região de influência das romarias do padre Cícero, o maior índice de permanência de fiéis na Igreja Católica. Embora a fidelidade à Igreja Católica seja uma das mais importantes características dos romeiros, as questões disciplinares que marcaram as primeiras quatro décadas desse fenômeno criaram uma situação desconfortável para a Igreja. Acolhendo-os, ainda que com certa reserva, a Igreja não enfrentou um estudo mais aprofundado sobre padre Cícero Romão, amado por eles como seu guia na devoção a Nossa Senhora das Dores e ao Sagrado Coração de Jesus.


O povo, entretanto, continuou crescendo em seu fervor, de forma que a própria permanência e evolução dessa forma de piedade popular provocou, em 2001, o despertar do novo bispo diocesano, dom Fernando Panico. Estimulado, também, pelos gestos de reconciliação de João Paulo II, durante o Grande Jubileu de 2000, dom Fernando iniciou um processo de reabilitação histórico-eclesial do padre Cícero, marcado principalmente pela busca de reconciliação com os romeiros e sua plena inserção na vida da Diocese.

Esse gesto do bispo, proclamando a recíproca pertença do padre Cícero e da Igreja de Crato, ecoou pelo sertão nordestino como sopro de uma grande alegria, multiplicando-se o número de romeiros e sua devoção. A Igreja de Nossa Senhora das Dores foi elevada à condição de Santuário Diocesano. Uma Carta Pastoral, denominada “Romarias e Reconciliação”, selou o acolhimento sem reservas da Igreja a seu povo. Ainda há um grande caminho a ser percorrido, agora em clima de grande esperança e alegria. Essa caminhada servirá como modelo para o diálogo da Igreja com o Povo em nosso tempo. 

Texto de Antônio Braga

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