Os dizeres do Apóstolo se explicam sem dificuldade, desde que se tenham em vista os seguintes tópicos:
Origem do texto
São Paulo estava detido no cárcere em Roma, durante o biênio de 61 a 63. Sofria naturalmente com isto, pois, cheio de ardor pela salvação das almas, desejaria continuar a percorrer o mundo e pregar, como havia feito até então. Prisioneiro, São Paulo mantinha, não obstante, vivo intercâmbio com os fiéis das mais distantes regiões, procurando dar a todos uma palavra de orientação oportuna. Foi o que o levou a escrever aos cristãos de Colossas (Ásia menor) uma carta, na qual se encontra o trecho que nos interessa.
Aproximemo-nos, pois, de tal passagem.
No inicio da missiva, São Paulo se refere ao Evangelho e à sua
vocação de ministro do Evangelho: aludindo a isso, verifica que toda a
sua vida, seus trabalhos, sua liberdade e seu cativeiro, estão
consagrados ao ministério apostólico; em consequência, nada lhe pode
parecer inútil ou vão, nem mesmo a sua aparente inércia. Ao contrário,
prossegue São Paulo, os seus sofrimentos de prisioneiro (agravados pelos
achaques de saúde e tantos outros males que o podiam afligir), longe de
o abater, vêm a ser, para ele, fonte de veemente alegria… — Alegria?
Por que? — Porque têm o valor de colaboração na obra de Redenção do
mundo!
Eis as palavras textuais do Apóstolo:
« . Evangelho que ouvistes e que foi pregado a todas as criaturas
existentes debaixo do céu e do qual eu, Paulo, fui constituído ministro.
Neste momento, encontro minha alegria nos sofrimentos que padeço por
vós, e completo (antanapleróo) em minha carne o que falta às tribulações (toon thlípseon) de Cristo, em favor do seu corpo, que é a Igreja» (Col 1,23s).
Procuremos agora sondar
As expressões do Apóstolo
Antanapleróo é vocábulo que, em toda a S. Escritura, só aqui ocorre. Possui extraordinária forca de expressão, pois se compõe de anti = em lugar de; aná = para cima, até o alto; e pleróo = encher. Significa «acabar de encher até o auge, em lugar de outrem…» ou «…continuando a obra de outrem».
… toon thlípseon. A palavra thlípseis, tribulações, em grego é mais forte do que pathémata,
padecimentos. Designa tudo que Cristo suportou de penoso na sua vida
cotidiana desde o nascimento no presépio até a morte de cruz. Os
Evangelhos nos referem, sim, que, além de padecer as sangrentas dores
finais de sua vida, Jesus quis sucessivamente experimentar a fome (cf.
Mt 4,2), a sede (cf. Jo 4,7; 19, 28), o cansaço (cf. Jo 4,6), a pobreza
de não ter nem sequer onde pousar a cabeça (cf. Mt 8,20)…, enfim tudo
aquilo que possa ocorrer de doloroso na vida de um homem aqui na terra,
qualquer que seja a sua categoria social.
Merecer e aplicar
Cristo ofereceu ao Pai celeste os sofrimentos que Ele assim abraçou. E essa oblação teve certamente valor infinito, porque era ato do Homem-Deus, sempre e irrestritamente agradável ao Pai.
Portanto, nada faltou aos padecimentos de Cristo no plano do merecimento. O Senhor, por sua vida e morte na terra, mereceu todas as graças necessárias à salvação de todos os homens sem exceção.
Merecer, porém, ainda não é aplicar; significa apenas adquirir;
se essa aquisição visa beneficiar a outras pessoas, ela tem que ser
estendida ou aplicada a essas outras pessoas. É justamente isto que se
dá com a Paixão de Cristo; tendo merecido tudo em favor dos homens, ela
devia e deve estender-se, isto é, tomar vulto concreto em cada criatura
humana no decorrer dos séculos… Daí dizer-se que ela se completa ou é
completada em cada cristão.
Em consequência, compreende-se que,
se no plano do merecimento nada falta à Paixão de Cristo (seu valor é
infinito), no plano da aplicação ou do desdobramento, algo lhe falta
naturalmente, algo que depende estritamente do fator «tempo», algo que
somente com a existência sucessiva das gerações cristãs lhe pode advir.
Em outros termos: a Paixão de Cristo logrou
imediatamente a plenitude de seus frutos apenas na santíssima humanidade
de Cristo; somente esta ressuscitou como nova criatura (cf. 2 Cor
5,17), isenta de todas as consequências do pecado. Depois disto, é
preciso por desígnio de Deus, que os cristãos, um por um, percorram o
mesmo caminho trilhado pelo .Senhor, isto é, padeçam em união com Cristo
uma parcela da Paixão redentora, assimilando-a a si, a fim de conseguir
os efeitos desta no dia da ressurreição dos corpos.
Enquanto, pois,
houver cristãos neste mundo a trilhar tal caminho, ou seja, até o fim
dos séculos, poder-se-á dizer que a Paixão de Cristo se vai estendendo
ou desdobrando; ela vai tomando novos e novos suportes; vai adquirindo
vulto ou configuração própria em novos sujeitos. Destarte S. Paulo
afirma que, quando um cristão sofre em espírito cristão, isto é, como
membro vivo do Corpo Místico, já não é um simples filho de Adão que
padece em castigo do pecado, mas é o Cristo que nele sofre para estender
a ele a obra da Redenção.
Na base dessas ideias, Pascal (+1662) bem podia escrever : «Jésus
sera en agonie jusqu’à la fin du monde. — Jesus estará em agonia até o
fim do mundo».
Para tornar esta afirmação ainda mais clara, tenham-se em vista os dizeres de S. Paulo aos Gálatas:
«Estou crucificado com Cristo. E, se vivo, não sou mais eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gál 2,19s).
Esta frase se poderia também assim construir: «… E, se padeço, não
sou mais eu que padeço, é Cristo que padece em mim; é Cristo que
prolonga sua paixão em mim, dando-lhe novo. suporte, nova configuração
concreta.»
E, da mesma forma que São Paulo, todo cristão que viva na graça
santificante, pode asseverar que é Cristo quem nele vive e padece, não
somente nas horas solenes e extraordinárias, mas também nos momentos
mais simples da vida cotidiana. S. Agostinho, consciente dessa
realidade, falava da «Paixão total de Cristo, que sofreu enquanto é
nossa cabeça, e que continua a sofrer em seus membros, isto é, em nós»
(In Ps LXI Migne 36, 731).
Eis, porém, que o horizonte do Apóstolo ainda se dilata: a Paixão do
Senhor, prolongada em cada cristão, vai beneficiar não somente a este,
mas também a toda a comunidade, ou seja, aos demais membros da Igreja :
«… em favor do Corpo de Cristo, que é a Igreja», diz o Apóstolo. Cada
um, portanto, mesmo prostrado no cárcere ou no leito de doença, vem a
ser portador da Redenção em favor do próximo, desde que padeça como
membro vivo do Corpo Místico de Cristo.
É o que o Sto. Padre Pio XII lembrava de maneira lapidar na sua encíclica sobre a Corpo Místico de Cristo:
«O que o nosso Divino Salvador começou outrora pendente da cruz, Ele
não cessa de o perfazer continuamente na celeste bem-aventurança… A nós é
dado cooperar com Cristo nesta obra salvífica; da parte de um só
(Senhor) e por mediação de um só (Senhor) somos salvos e salvamos» (ed.
«Lumen Christi» pág. 53).
Como se vê, Cristo, desejando atingir todos os homens de qualquer
época e lugar, tem por bem servir-se de colaboradores, cujos trabalhos,
fadigas e orações vêm a ser instrumentos de seus méritos redentores.
Conclusão
Em conclusão, o texto de Col 1,24 oferece :
1) uma teologia (visão teológica) do sofrimento.
Sofrer, para o cristão,não é senão continuar o sofrimento de Cristo,
tendo em vista a finalidade redentora mesma da Paixão do Senhor. Em
outros termos: sofrer, para o cristão, é deixar que Cristo faça em seus
membros o que Ele primeiramente fez na Cabeça;
2) uma teologia (visão teológica) do trabalho. O
sofrimento que São Paulo tanto estimava, não era, em grande parte, senão
a luta ou tarefa cotidiana. Nada, nenhuma ocupação, parecia ao Apóstolo
destituída de rico alcance, pois, tudo que ele fazia, ele o fazia como
membro consagrado a Cristo. Consciência análoga deve animar todo e
qualquer cristão ao abraçar diariamente a sua lide aparentemente
insignificante: o trabalho do cristão que esteja na graça santificante,
pode vir a ser extensão da obra da Redenção aos setores mais alheios ao
santuário;
3) uma teologia (visão teológica) da comunhão dos santos.
O texto de Col 1,24 dá a ver que, independentemente da ação direta sobre as almas por meio de palavra ou de exemplo, a vida fiel do cristão
é utilíssima ao próximo. Que esta proposição reconforte principalmente
os que, impossibilitados de falar ou agir em público, se acham detidos num leito de dor, crucificados com Cristo!
Dom Estevão Bittencourt, OSB
Dom Estevão Bittencourt, OSB
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