O “Século de Ferro”, com a decadência na vida monástica, na Sede de Pedro e mesmo na vida cristã, demonstrou que a conversão dos povos bárbaros não tinha levado a um autêntico estilo de vida cristã, pois, por trás de uma sociedade cristã, se ocultava um mundo viciado de antigas práticas pagãs, ainda não tocado pelo Evangelho.
IGREJAS PRÓPRIAS
Uma das pragas, surgida desde o século VII entre os francos, mas existente também na Itália e na Espanha, foi o sistema das igrejas “próprias” ou “privadas”. Quando um rico construía uma igreja, capela ou mosteiro, considerava-os como sua propriedade. Podia mantê-los, deixar em herança, trocar ou doar e, a seu gosto, nomeava ou demitia o vigário ou abade. Quando a autoridade religiosa morria, enquanto não se escolhia outra, os rendimentos eram do dono. Para seu uso, reservava ainda as ofertas, os dízimos e as espórtulas.
No século VIII, o número de igrejas próprias era muito superior ao das igrejas sujeitas à jurisdição dos bispos. Houve casos em que dioceses eram bens particulares, verificando-se verdadeiro leilão no momento da escolha do titular. Já vimos no capítulo anterior que no século X a própria sede papal tornou-se uma igreja particular.
Esse sistema era totalmente estranho às concepções da Igreja antiga, quando cabia ao bispo, como pastor, a nomeação dos titulares das igrejas e dos administradores dos bens eclesiásticos.
AS INVESTIDURAS LEIGAS
As vantagens oferecidas à Igreja pelo Estado tiveram como contrapartida uma exagerada preocupação das autoridades eclesiásticas com a política, fazendo-as se esquecerem dos deveres pastorais. O serviço na corte colocou-as no meio das intrigas palacianas.
Os reis tinham todo o interesse em influenciar na nomeação dos bispos e abades, devido à importância de sua função e, para piorar, normalmente eram aliados da monarquia.
Bispos e abades eram verdadeiros príncipes soberanos, detendo o mercado da moeda e a alfândega. Alguns, contra toda a tradição cristã, chegam a comandar exércitos.
Ao invés da eleição canônica pelo clero e pelo povo, a regra passou a ser a nomeação pelo rei ou, no mínimo, dependia de confirmação real.
A entronização do bispo ou abade, a partir do século XI, passou a ser conhecida como investidura. O rei entregava o báculo e o anel à nova autoridade religiosa que, em seguida, prestava juramento de fidelidade e de vassalagem. Somente então seguia-se a consagração episcopal.
Isso era contrário à essência do ofício espiritual, pois passava a idéia de que a Igreja era propriedade real e, para piorar, a nomeação se dava, não pela dignidade do candidato, mas pela política e interesses econômicos.
Embora que reis piedosos, como Carlos Magno, Otão I e Henrique II tenham nomeado pessoas digníssimas, muitas dioceses e abadias foram entregues a leigos, a pessoas indignas e até a crianças, não se ficando livre do pecado da simonia, ou seja, da venda de benefícios sagrados.
Qual o caminho trilhado pela Igreja para recuperar sua liberdade?
MOVIMENTOS DE
RENOVAÇÃO E DE REFORMA
Como quase sempre aconteceu, o impulso renovador parte dos mosteiros. Assim foi entre os anos 900 e 1050, quando a Igreja conseguiu se libertar de muitos abusos incrustados em sua estrutura.
Centros de reforma foram os mosteiros de Cluny (França), Görze (Alemanha), de onde partem grupos renovadores para a Bélgica, Itália, Espanha, Inglaterra...
A abadia de Cluny, que surgiu em 910, quando os mosteiros estavam em profunda decadência, foi fundada pelo duque Guilherme de Aquitânia que, renunciando ao direito de propriedade, colocou-a sob a proteção papal, assegurando a liberdade do mosteiro.
A igreja da abadia de Cluny em seu apogeu. Era a maior do mundo |
A abadia ganhou o antigo rigor monástico e profunda renovação espiritual, pois ingressava em Cluny quem realmente queria ser monge. A força vital era a liturgia. A oração se torna quase a única atividade dos monges. Isso se tornou perigoso, pois a regra de São Bento coloca o trabalho físico e intelectual como atividade necessária.
O povo, que gostava muito de Cluny, encheu o mosteiro de doações e riquezas, nela erguendo a maior igreja do mundo, com 5 naves, sendo das quais 2 transversais, 7 torres e 5 capelas. Cluny desenvolveu de modo profundo a idéia da Comunhão dos Santos: ali se rezava noite e dia pelos fiéis defuntos. Por uma dessas ironias da história, em 1258, Cluny, que tinha cumprido sua grandiosa missão de libertar a Igreja do governo leigo, se oferece como propriedade ao rei Luiz IX da França.
A REFORMA GREGORIANA
Cluny colocou-se a serviço da liberdade da vida monástica, e de toda a Igreja. Era um mosteiro livre, com governo próprio. Seu exemplo se alastra: Papas e bispos, donos de igrejas próprias, chamam os monges de Cluny para reformarem seus mosteiros.
Milhares de comunidades e mosteiros se confederam a Cluny, absorvendo seu espírito e ganhando a liberdade, pois ficavam sujeitos apenas à Sé apostólica. O abade de Cluny é o abade dos abades, havendo mosteiros com 400 monges!
Cluny oferecerá à Igreja papas reforma-dores, como:
Leão IX (1049-1054), que leva para Roma o ideal de liberdade.
Gregório VII (1073-1085), antes monge Hildebrando, que lutou com bispos e imperadores, conseguindo libertar a nomeação das autoridades da Igreja da influência imperial. Na Concordata de Worms (1122) foi sancionado o princípio que limitava o direito dos patrões das igrejas próprias sem à proteção e à apresentação do candidato eclesiástico. O ofício propriamente dito era conferido só pelo bispo.
A reforma gregoriana transformou a história européia: de uma Igreja governada pelos leigos, passa-se a uma sociedade governada pela Igreja, a uma Sociedade Cristã. Há uma transformação na vida religiosa, como as grandes reformas de São Bernardo de Claraval (os cistercienses), os cartuxos, carmelitas, cônegos regulares e premonstratenses.
O LEIGO CONTA POUCO
O papa, antes controlado pelo imperador, tem agora um efetivo poder sobre o imperador e o Estado. A autoridade dos soberanos, afirmava Inocêncio IV (1243-1254), deriva da do papa que, como vigário de Deus, é a suprema autoridade na cristandade e mesmo no mundo. Temos uma clericalização do Estado e da vida cristã.
Com Gregório VII e seus sucessores Inocêncio III e Bonifácio VIII, veremos uma Igreja onde o leigo conta pouco, onde o Direito Canônico terá a palavra final. Num retrocesso evangélico, a vida da Igreja passa a ser orientada por leis sempre mais abundantes.
O Imperador Henrique IV, em trages de penitente, pede perdão ao Papa Gregório VII (inverno de 1076-77), em Canossa |
O Papa surge como o guia do Ocidente. Gregório VII coloca o grande imperador alemão Henrique IV em penitência, prostrado a seus pés, pedindo para ser reintegrado como imperador. Este papa expôs seu programa político-eclesiástico em 27 breves proposições que constituem o Dictatus Papae.
Citamos algumas delas que marcam o pontificado romano até nossos dias:
• Somente o papa pode depor e absolver bispos.
• Somente ele pode estabelecer novas leis, reunir novos povos, dividir um bispado, unir bispados pobres.
• O papa é o único homem ao qual os príncipes beijam os pés.
• Nenhum sínodo pode ser convocado sem sua ordem.
• Ninguém pode modificar suas sentenças nem julgá-lo.
• O Romano Pontífice é indubita-velmente santo.
• Quem não está com a Igreja romana não deve ser considerado católico.
Um programa completo de centralização da Igreja nas mãos do papa! Devemos porém constatar que todos esses papas poderosos terminaram derrotados:
Gregório VII é exilado, Inocêncio III morre e é abandonado nu pela sua corte, Bonifácio VIII morre após ser traído e aprisionado. O Cristo crucificado e nu parece não combinar com as púrpuras palacianas.
A verdadeira reforma cristã virá através da humilde obra de Francisco e Clara de Assis!
Pe. José Artulino Besen
Prof. de História do ITESC
PARA REFLETIR
1 - Por que as reformas da Igreja quase sempre nascem dos mosteiros ?
2 - Riqueza e poder ameaçaram a vida da Igreja. Isso continua sendo um perigo ?
3 - Então, qual a maneira melhor de a Igreja realizar sua missão ?
Exatamente quando a Igreja aparecia no auge de seu esplendor e o poder papal atingia sua maior extensão, na Europa se intensifica e multiplica o surgimento de heresias, de movimentos religiosos contestadores.
Suas características: serem contra o sacerdócio, negarem os sacramentos e o sacrifício eucarístico. Afirmavam também a inutilidade das obras exteriores
Tinham aversão aos poderes religiosos e sacramentais dos sacerdotes e afirmavam uma comunidade cristã igualitária, sem organização hierárquica e sem diferença entre clérigos e leigos.
A uma vida religiosa, fundamentada mecanicamente nos sacramentos, afirmavam que “só a vida salva”.
Contra uma Igreja triunfante, rica, política, propõem uma Igreja fundada exclusivamente no Evangelho da pobreza e da oração. No fundo, o que anima o coração do herege não é a maldade e o erro, mas o desejo de uma Igreja pura. O herege, apesar de todas as suas contradições, não quer destruir a Igreja: quer reformá-la.
Para estudarmos a situação, citaremos três modalidades de anseio religioso:
- os cátaros ou albigenses (dualistas);
- os valdenses evangélicos anti-sacramentais;
- as ordens mendicantes, dominicanos e franciscanos.
As duas primeiras se opõem à Igreja, enquanto os mendicantes reformam a vida cristã permanecendo dentro dela.
OS CÁTAROS OU ALBIGENSES
A heresia dos cátaros (= puros) parece ter origem nos Balcãs (Bulgária), e é um resíduo do antigo maniqueísmo, que via tudo em chave dualista: espírito-matéria, bem-mal.
O catarismo era estranho a toda evolução da sociedade européia e previa sua dissolução, pois negava o trabalho manual, o exército, o matrimônio, a hierarquia civil e eclesiástica e a propriedade privada.
Condenando a matéria como má, se opunha a todos os sacramentos, especialmente à Eucaristia; negavam a encarnação, a ressurreição e opunham o Antigo ao Novo Testamento. Seu único sacramento era o Consolamentum: imposição das mãos por um membro mais perfeito.
Os cátaros possuíam uma sólida organização interna, com verdadeira e própria hierarquia. Pelo ano 1150, tinham-se difundido largamente no sul da França. Suas doutrinas, apesar de estranhas, exerciam um certo fascínio pela sua pobreza e modéstia, sendo uma crítica feroz à riqueza e poder da Igreja e à mundanização de certos bispos e sacerdotes.
A Igreja os combateu duramente, organizando contra eles expedições militares e enviando-lhes pregadores. Não eram esses os meios adequados para combatê-los, mas foram destruídos, restando apenas alguns representantes no século XIV.
VALDENSES OU POBRES DE LIÃO
Pedro de Vaux, rico comerciante de Lião, querendo atingir o estado de perfeição cristã, em 1173 distribuiu seus bens aos pobres e propôs-se, como ideal de vida, peregrinar pregando a penitência e levando uma vida de pobreza apostólica (cf. Mt 10,9ss). Em vista disso, reuniu homens e mulheres levados pelo mesmo ideal e enviou-os dois a dois a pregar a penitência. Objetivo: retornar à Igreja apostólica pobre, seguindo sempre a Escritura.
Eram os “pobres de Lião”, que se sentiam como ovelhas entre lobos. Mas, este estilo de vida e pregação era um desafio silencioso ao mundo cristão e, em primeiro lugar, à hierarquia e às abadias. Infelizmente, faltava-lhes uma instrução maior para a pregação que, aliás, estava proibida aos leigos pelo Concílio de 1179. Surge o desencontro entre os representantes da “vida apostólica” e os representantes do ministério apostólico. Cada um assume posições mais duras e o desencontro é fatal.
Os valdenses passam a admitir apenas os sacramentos do batismo, da ceia e da penitência. Rejeitam o ministério ordenado. Sua eclesiologia é mais carismática do que institucional, mas se sentiam ligados aos Apóstolos. Não havendo acordo, são excomungados em 1184 pelo papa Lúcio III, muitos deles sofrendo a morte pela fogueira. O movimento de Pedro de Vaux mostra, pela primeira vez na Idade Média, o desejo de uma Igreja com laicato participante, combatendo o vitorioso clericalismo.
AS ORDENS MENDICANTES:
FRANCISCANOS E DOMINICANOS
O século XII, ao mesmo tempo em que assiste ao surgimento de movimentos heréticos, vê crescer no seio eclesial novas e renovadas ordens religiosas. As ordens mendicantes representam algo totalmente novo na série das ordens religiosas. Elas obrigam os frades e os conventos a uma severíssima pobreza, limitando-lhes as posses ao mínimo necessário. Devem receber o sustento através do trabalho manual e nunca ter contato com o dinheiro.
Clara de Assis e Francisco de Assis |
Dedicavam-se à penitência e à pregação, especialmente ao confessionário. Permaneciam no mundo e nele agiam. Numa época de clero rico, descomprometido, retomando a imitação de Cristo, os mendicantes injetam novas correntes vitais na cristandade. A Ordem Terceira representa uma característica importante entre as ordens mendicantes, já que a espiritualidade mendicante é levada à vida matrimonial e profissional.
Esses “irmãos da penitência” permaneciam na família, mas vivendo sob certas regras, algumas revolucionando a sociedade: não podiam levar armas nem fazer guerra, quem tivesse riqueza ou terra roubadas deveria devolvê-las, manter uma caixa de socorro aos pobres, etc. Era a vida religiosa fermentando vigorosamente a sociedade medieval. Os franciscanos formam a primeira grande ordem mendicante.
Francisco de Assis (+1226) é o representante mais célebre do ideal da imitação de Jesus na vivência da pobreza. Sua espiritualidade está atenta à pessoa de Jesus, também nos sofrimentos. Vivendo a pobreza, critica a riqueza, mas não a Igreja, tanto que recebe a aprovação papal. Centros de sua vivência espiritual são o mistério da encarnação (cf. o presépio de Grécio,1223) e a Eucaristia. Francisco é o cantor da criação, o cantor de todas as criaturas. Tudo lhe revela a presença e a glória de Deus. É um irmão universal.
Assis: Basílica superior de São Francisco, onde ele está sepultado |
Em 1300, os franciscanos constituíam 1400 comunidades e 35 mil membros. Clara de Assis (+1253) trouxe a vida franciscana para o mundo feminino, fundando a Ordem das Clarissas, que vivem o ideal da pobreza na vida contemplativa. Domingos de Gusmão. Se Francisco quis ser seguido por irmãos de penitência, pregadores sem muita formação, Domingos de Gusmão(+1221) funda uma nova ordem mendicante, os dominicanos, mas constituída de pregadores, homens preparados para converter hereges.
Na comunidade dominicana o estudo tem importância fundamental.Em 1300, existiam 600 comunidades e mais de 12 mil membros. Além dessas ordens, devemos citar as dos carmelitas, agostinianos, cônegos regulares, premonstratenses, cistercienses.... Na grande crise espiritual por que passa a Igreja, o espírito da renovação vem de um novo estilo de vida religiosa.
MENDICANTES E INQUISIÇÃO
A Inquisição veio combater todas as formas de heresia e de contestação institucional. Mas conseguiu pouco. A grande obra de conversão foi realizada pelos mendicantes: eles viviam na Igreja o ideal da simplicidade, da pobreza e da piedade evangélicas e o colocavam ao alcance de todos.
Pe. José Artulino Besen
Prof. de História no ITESC
PARA REFLETIR
1 - Qual o objetivo das heresias e dos movimentos contestatórios?
2 - O que queriam dizer São Francisco, Santa Clara e São Domingos à Igreja daquele tempo?
E para nós?
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