O Santo Padre Papa Francisco entregou-nos, no dia 29 de junho, Solenidade de Pedro e Paulo, a sua Carta Apostólica “Desiderio Desideravi”, sobre a questão litúrgica (ainda sem tradução oficial em português). Esta carta é destinada aos bispos, sacerdotes e diáconos, pessoas consagradas e todos os fiéis leigos sobre a formação litúrgica do Povo de Deus, a partir da Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium promulgada em 4 de dezembro de 1963.
Vemos que no coração de Pastor Supremo da Igreja reside o desejo de promover a fidelidade às conclusões emanadas do Sagrado Concílio Ecumênico Vaticano II. Com o desejo de reacender o ardor e a beleza da liturgia, o Santo Padre o Papa Francisco descreve em 65 parágrafos sua meditação, reafirmando a comunhão eclesial em torno do rito romano resultante da reforma litúrgica. Esta carta merece ser meditada e aprofundada por todos nós. O Santo Padre diz que não pretende esgotar os argumentos do assunto, mas meditar alguns aspectos importantes da liturgia latina. Não se trata de uma nova instrução ou de um diretório com normas específicas, mas sim de uma meditação para compreender a beleza da celebração litúrgica e o seu papel no evangelizar.
A Carta Apostólica composta de uma breve introdução e nove meditações vem assim disposta: Introdução (1); A liturgia: o “hoje” da história da salvação (2-9); A liturgia: local do encontro com Cristo (10-13); A Igreja: Sacramento do Corpo de Cristo (14-15); O que significa teologia da liturgia (16-19); Redescobrir todos os dias a beleza da verdade da celebração cristã (20-23); Espanto com o mistério pascal, uma parte essencial da ação litúrgica (24-26); A necessidade de uma formação litúrgica séria e vital (27-47); Ars celebrandi (48-60); Conclusão (61-65).
Importa lembrar que desde a promulgação da “Sacrosanctum Concilium” a Igreja, Mater et Magistra, Mãe e Mestra, cuidadosa em sua missão evangelizadora, oferece ao povo fiel, orientações para a correta aplicação da reforma litúrgica. Para levar adiante o desejo salutar da Igreja, São Paulo VI, instituiu uma comissão especial cujo principal objetivo era o de pôr em prática, pelo melhor modo, as prescrições da referida Constituição sobre a Sagrada Liturgia, em vista de que acontecesse uma “participação ativa e consciente” na missão evangelizadora da Igreja.
Assim temos a Carta Apostólica “Sacram Liturgiam” de 25 de janeiro de 1964, que afirma, que é nossa maior preocupação que todos os cristãos e, especialmente todos os sacerdotes, se consagrem antes de tudo ao estudo da já mencionada Constituição e, a partir de agora, decidam aplicar suas prescrições individuais em boa-fé assim que entrarem em vigor. E como é necessário, pela própria natureza das coisas, que as prescrições relativas ao conhecimento e à difusão das leis litúrgicas ocorram imediatamente, exortamos fervorosamente os pastores das dioceses que, com a ajuda dos ministros sagrados, “dispensadores dos mistérios de Deus” (CONSTITUIÇÃO, artigo 19), apressem-se a agir para que os fiéis confiados aos seus cuidados compreendam, na medida permitida pela idade, pelas condições da sua própria vida e pela sua formação mental, a fim de que eles possam participar corporal e espiritualmente nos ritos da Igreja, com toda piedade.
É neste horizonte que creio devemos ler a Carta Apostólica “Desiderio Desideravi”, a qual, as meditações levam em conta a necessidade de toda Igreja assumir a reforma litúrgica nascida do Concílio Ecumênico Vaticano II. Assim se expressa o Papa Francisco, para que o antídoto da Liturgia seja eficaz, somos solicitados a redescobrir a cada dia a beleza da verdade da celebração cristã. Refiro-me, mais uma vez, ao seu significado teológico, como descrito admiravelmente no n. 7 da Sacrosanctum Concilium: “a Liturgia é o sacerdócio de Cristo que é revelado dado a nós em sua Páscoa, presente e ativo hoje através dos sinais sensíveis (água, óleo, pão, vinho, gestos, palavras) para que o Espírito, imerso no mistério pascal, possa, vidas transformar: nossas vidas inteiras, estamos nos conformando cada vez mais como Cristo. Neste interim, somos levados a uma contínua redescoberta da beleza da Liturgia e não a busca de um esteticismo ritual, que tem prazer apenas no cuidado da formalidade externa de um rito, ou estar satisfeito com uma observância escrupulosa das rubricas. E ainda mais o Papa Francisco nos exorta que: devemos cuidar de todos os aspectos da celebração (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestuário, cantos, música…) e observar todas as rubricas, para tanto é de fundamental importância a leitura e o estudo da Instrução Geral sobre o Missal Romano, principal livro de nossa celebração cristã, um “diretório espiritual e pastoral” de nossa celebração”.
Prosseguindo sua meditação, o Papa Francisco aponta que os desvios e tensões na questão litúrgica não é uma simples divergência entre diferentes sensibilidades sobre uma forma ritual, mas, sim, o problema é, acima de tudo, eclesiológico. Afirma o Papa, que não entende como se pode dizer que se reconhece a validade do Concílio — embora eu esteja um pouco surpreso que um católico possa se vangloriar de não o fazer — e não aceitar a reforma litúrgica nascida da Sacrosanctum Concilium, que expressa a realidade da Liturgia em conexão íntima com a visão da Igreja admirável descrita pela Lumen Gentium. Por essa razão, afirma o Papa — como explicou na carta enviada a todos os Bispos — sentiu seu dever (como Bispo de Roma) afirmar que “os livros litúrgicos promulgados pelos Pontífices Santos Paulo VI e João Paulo II, de acordo com os decretos do Concílio Vaticano II, como a única expressão do lex orandi do Rito Romano” (Motu Proprio Traditionis custodes, art. (1).)
A preocupação do Papa Francisco, com a formação para liturgia e da liturgia, deve ser também a de todos nós, pois, uma liturgia bem-preparada e organizada é fonte de evangelização, para tanto, precisamos de uma formação litúrgica séria e vital. Assim sendo, a configuração do estudo da Liturgia nos seminários também deve levar em conta a extraordinária capacidade que a celebração tem em si para oferecer uma visão orgânica do conhecimento teológico (…). Uma configuração litúrgica-sapiencial da formação teológica nos seminários certamente teria efeitos positivos, também na ação pastoral. Não há nenhum aspecto da vida eclesial que não encontre que ela seja cume e a fonte de onde emana toda ação da Igreja. Nesse sentido, entendemos que as palavras do Papa Francisco ao dizer: a pastoral de conjunto, orgânica e integrada, em vez de ser resultado da elaboração de programas complicados, é a consequência de colocar a celebração eucarística dominical, fundamento da comunhão, no centro da vida da comunidade. A compreensão teológica da Liturgia não permite, de forma alguma, compreender essas palavras como se tudo fosse reduzido ao aspecto cultural. Uma celebração que não evangeliza não é autêntica, como não é uma proclamação que não leva ao encontro com o Ressuscitado na celebração: ambos, então, sem o testemunho da caridade, são como um metal que ressoa ou um címbalo que atordoa (cf. 1Cor 13,1) (n. 37).
Ele nos apresenta ainda, outra questão fundamental e decisiva a educação litúrgica necessária para adquirir a atitude interior, que nos permite situar e entender os símbolos litúrgicos. Desenvolver uma mistagogia litúrgica no processo de formação da liturgia que nos permitirá à luz do Espírito Santo celebrar o mistério da fé, com a riqueza da linguagem simbólica e gestual (n. 47). Não é necessário falar muito, não é necessário ter entendido tudo sobre esse gesto: é necessário ser pequeno, tanto ao entregá-lo, quanto ao recebê-lo. O resto é obra do Espírito. Assim, fomos iniciados em linguagem simbólica. Não podemos permitir que essa riqueza seja roubada de nós. À medida que crescemos, podemos ter mais meios para entender, mas sempre na condição de permanecermos pequenos, afirma o Papa.
Nesta Carta Apostólica, o Papa Francisco traz a beleza do rito romano e sua riqueza inconfundível, por isso é missão dos bispos, formadores, presbíteros e catequistas proporcionar a assembleia o direito de ser capaz de sentir nos gestos e palavras o desejo que o Senhor tem, hoje como na Última Ceia, de continuar comendo a Páscoa conosco. Portanto, o Ressuscitado é o protagonista, e não nossa imaturidade, que busca assumir um papel, uma atitude e uma forma de se apresentar, que não corresponde a ele (n. 60). Presidir a Eucaristia é mergulhar na fornalha do amor de Deus. Quando essa realidade é entendida ou mesmo intuída, certamente não precisamos mais de um diretório que dite o comportamento adequado. Se precisamos, é por causa da dureza do nosso coração.
Somos continuamente chamados a redescobrir a riqueza dos princípios gerais estabelecidos na Sacrosanctum Concilium, entendendo o elo íntimo entre a primeira Constituição conciliadora e todas as outras. Portanto, diz ele, não podemos voltar a forma ritual que os Padres Conciliares, cum Petro e sub Petro, sentiram a necessidade de reformar, aprovando, sob a orientação do Espírito e de acordo com sua consciência como pastores, os princípios dos quais a reforma nasceu. Os Pontífices Santos Paulo VI e João Paulo II, ao aprovar os livros litúrgicos reformados ex decreto Sacrosancti Ecumenici Concilii Vaticani II, garantiram a fidelidade da reforma ao Concílio. É por isso que o Papa escreveu Traditionis Custodes, para que a Igreja possa levantar, na variedade de línguas, uma oração única e idêntica capaz de expressar sua unidade. Esta unidade que, como ele já escreveu, pretende ver restaurada em toda a Igreja do Rito Romano.
As palavras do Papa Francisco nos enchem de alegria e esperança ao dizer que: Gostaria que esta carta nos ajudasse a reacender nosso espanto com a beleza da verdade da celebração cristã, recordar a necessidade de uma autêntica formação litúrgica e reconhecer a importância de uma arte de celebração, que está a serviço da verdade do mistério pascal e da participação de todos os batizados, cada um com a especificidade de sua vocação. Toda essa riqueza não está longe de nós: está em nossas igrejas, em nossas festas cristãs, na centralidade do domingo, na força dos sacramentos que celebramos. A vida cristã é um caminho contínuo de crescimento: somos chamados a nos permitir formar-nos com alegria e em comunhão (n. 62). É por isso que o Papa diz que gostaria de deixar mais uma indicação para continuar nosso caminho. O Papa Francisco convidou a todos a redescobrir o significado do ano litúrgico e do Dia do Senhor: esta também é uma palavra de ordem do Conselho (cf. Sacrosanctum Concilium, nn. 102-111) (n. 63).
Corroborando com o Papa Francisco e fazendo minhas suas palavras peço a todos os fiéis: vamos abandonar as polêmicas para ouvirmos juntos o que o Espírito diz à Igreja, vamos manter a comunhão, vamos continuar a nos surpreender com a beleza da Liturgia. Foi-nos dada a Páscoa, vamos preservar o desejo contínuo de que o Senhor continue a fazer Páscoa conosco.
Cardeal Orani João Tempesta
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