“A mim parece seguro que à Igreja a aguardam tempos muito difíceis. A sua verdadeira crise apenas começou.”
O futuro da
Igreja pode vir e virá também hoje só da força daqueles que têm raízes
profundas e vivem da plenitude pura da sua fé. O futuro não virá
daqueles que só dão receitas. Não virá daqueles que só se adaptam ao
instante atual. Não virá daqueles que só criticam os demais e se tomam a
si mesmos como medida infalível. Tampouco virá daqueles que
escolhem só o caminho mais cômodo, daqueles que evitam a paixão da fé e
declaram falso e superado, tirania e legalismo, tudo o que é exigente
para o ser humano, o que lhe causa dor e o obriga a renunciar a si
mesmo.
Digamos de forma positiva: o futuro da
Igreja, também nesta ocasião, como sempre, ficará marcado de novo com o
selo dos santos. E, portanto, por seres humanos que percebem mais que as
frases que são precisamente modernas. Por aqueles que podem ver mais
que os outros, porque a sua vida abarca espaços mais amplos. A
gratuitidade que liberta as pessoas alcança-se só na paciência das
pequenas renúncias cotidianas a si mesmo. […]
Que significa isso para a nossa
pergunta? Significa que as grandes palavras daqueles que nos profetizam
uma Igreja sem Deus e sem fé são palavras vãs. Não necessitamos de uma
Igreja que celebre o culto da ação em «orações» políticas. É
completamente supérflua e por isso desaparecerá por si mesma.
Permanecerá a Igreja de Jesus Cristo, a
Igreja que crê no Deus que se fez ser humano e que nos promete a vida
mais além da morte. Da mesma maneira, o sacerdote que só seja um
funcionário social pode ser substituído por psicoterapeutas e outros
especialistas. Mas continuará sendo ainda necessário o sacerdote que não
é especialista, que não fica à margem quando aconselha no exercício do
seu ministério, mas sim que em nome de Deus se põe à disposição dos
demais e se entrega a eles nas suas tristezas, suas alegrias, sua
esperança e sua angústia.
“O futuro da Igreja, também nesta ocasião, como sempre, ficará marcado de novo com o selo dos santos”
Demos um passo mais. Também nesta
ocasião, da crise de hoje surgirá amanhã uma Igreja que terá perdido
muito. Se fará pequena, terá de começar tudo desde o princípio. Já não
poderá encher muitos dos edifícios construídos numa conjuntura mais
favorável. Perderá adeptos e com eles muitos dos seus privilégios na
sociedade. Apresentar-se-á, de um modo muito mais intenso que até agora,
como a comunidade da livre vontade, a que só se pode aceder por meio de
uma decisão.
Como pequena comunidade, reclamará com
muita mais força a iniciativa de cada um dos seus membros. Certamente,
conhecerá também novas formas ministeriais e ordenará sacerdotes
cristãos provados que continuem exercendo a sua profissão: em muitas
comunidades menores e em grupos sociais homogêneos a pastoral
exercer-se-á normalmente desse modo.
Junto a essas formas continuará sendo
indispensável o sacerdote dedicado por inteiro ao exercício do
ministério como até agora. Mas nessas mudanças que se podem supor, a
Igreja encontrará de novo e com toda a determinação o que é essencial
para ela, o que sempre foi o seu centro: a fé no Deus trinitário, em
Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, a ajuda do Espírito que
durará até o fim. A Igreja reconhecerá de novo na fé e na oração o seu
verdadeiro centro e experimentará novamente os sacramentos como
celebração e não como um problema de estrutura litúrgica.
Será uma Igreja interiorizada,
que não suspira pelo seu mandato político e não flerta com a esquerda
nem com a direita. Resultar-lhe-á muito difícil. Com efeito, o processo
da cristalização e a clarificação custar-lhe-á também muitas forças
preciosas, a fará pobre, a converterá numa Igreja dos pequenos.
O processo resultará ainda mais difícil,
porque haverá que eliminar tanto a estreiteza de visões sectárias como a
voluntariedade entusiasmada. Pode-se prever que tudo isto requererá
tempo. O processo será longo e laborioso, tal como também foi muito
longo o caminho que levou dos falsos progressismos, em vésperas da
revolução francesa (quando também entre os bispos estava na moda ridicularizar os dogmas e talvez inclusive dar a entender que nem sequer a
existência de Deus era de modo algum segura) até à renovação do século
XIX.
Mas depois da prova destas divisões
surgirá, de uma Igreja interiorizada e simplificada, uma grande força.
Porque os seres humanos serão indescritivelmente solitários num mundo
plenamente planificado. Experimentarão, quando Deus tiver desaparecido
totalmente para eles, a sua absoluta e horrível pobreza. E então
descobrirão a pequena comunidade dos crentes como algo totalmente novo.
Como uma esperança importante para eles, como uma resposta que sempre
procuraram às apalpadelas.
A mim parece seguro que à Igreja a aguardam tempos muito difíceis. A
sua verdadeira crise apenas começou todavia. Há que contar com fortes
sacudidas. Mas eu estou também totalmente seguro do que permanecerá no
final: não a Igreja do culto político, que fracassou já em Gobel, mas
sim a Igreja da fé. Certamente, já não será nunca mais a força dominante
na sociedade na medida em que o era até há pouco tempo. Mas florescerá
de novo e se fará visível aos seres humanos como a pátria que lhes dá
vida e esperança para além da morte.
*Este texto foi extraído de cinco
homilias radiofônicas, proferidas, em 1969, pelo professor de teologia
Joseph Ratzinger. Essas mensagens foram publicadas em livro sob o título
de “Fé e Futuro”.
Por Joseph Ratzinger,
Glaube und Zukunft, 1970.
http://destrave.cancaonova.com/como-sera-a-igreja-do-futuro/
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