Em síntese: O matrimônio sacramental validamente contraído e
carnalmente consumado é indissolúvel. A Igreja o afirma em fidelidade ao
Evangelho. Todavia o matrimônio não-sacramental é dissolvido em favor
do matrimônio sacramental (privilegio paulino e privilegio petrino).
Também o matrimônio não-consumado carnalmente pode ser dissolvido. É o
que vem explanado nas linhas subsequentes.
* * *
Nem sempre é claro ao público o conceito de indissolubilidade do
matrimônio sacramental. Apontam-se casos que parecem constituir
exceções. Daí o propósito das considerações deste artigo.
1. Indissolubilidade e Divórcio
A indissolubilidade da união conjugal não se fundamenta apenas no Evangelho, mas se deriva da própria lei natural. Com efeito, a união conjugal é tão íntima e plena que ela não admite restrições; doar-se a alguém "para constituir uma só carne" com reservas é incoerência, que o próprio bom senso rejeita. O que se pode e deve desejar, é que a união matrimonial só seja contraída após a devida preparação e com a possível maturidade; naturalmente ela implicará sempre um risco, como tudo o que é grande implica risco; é impossível, porém, fugir ao risco se alguém quer crescer e auto-realizar-se.
O Evangelho corrobora a lei natural, como se verá a seguir.
1.1. A doutrina do Novo Testamento
São quatro os textos do Novo Testamento que tratam do matrimônio e da sua indissolubilidade:
- Marcos 10,11s: "Todo aquele que repudiar sua mulher e esposar outra,
comete adultério contra a primeira; e, se essa repudiar o seu marido,
comete adultério".
- Lucas 16,18: "Todo aquele que repudiar a sua mulher e esposar outra,
comete adultério; e quem esposar uma repudiada por seu marido comete
adultério".
- 1Coríntios 7,10s: "Quanto aqueles que estão casados, ordeno não eu,
mas o Senhor: a mulher não se separe do marido; se, porém, se separar,
não se case de novo, ou reconcilie-se com o marido; e o marido não
repudie a esposa".
- Mateus 5,31s: "Eu vos digo: todo aquele que repudia sua mulher, a não
ser por motivo de 'pornéia', faz que ela adultere; e aquele que se casa
com a repudiada, comete adultério". O mesmo ocorre em Mt 19,9.
Como se vê, em Marcos, Lucas e 1Coríntios a recusa de segundas núpcias é
peremptória; não se admite exceção nem mesmo em favor da parte
repudiada, que pode ser vítima inocente; as razões pessoais, subjetivas e
sentimentais não vêm ao caso. Trata-se de impossibilidade objetiva,
derivada da ordem dos valores, independente de culpa ou não-culpa dos
contraentes. Com outras palavras: essa indissolubiiidade não está ligada
ao comportamento de esposo e esposa, comportamento para o qual se
poderia pleitear misericórdia e perdão. O matrimônio, por sua índole
mesma, é indissolúvel; quem o contrai, deve sabê-lo de antemão; Jesus
mesmo diz: "O que Deus uniu, o homem não o deve separar" (Mateus 19,6).
Acontece, porém, que no texto de Mateus 5,32s e Mateus 19,9 Jesus parece
admitir uma exceção, a saber... no caso em que haja 'pornéia'. Como
entender esta palavra?
- Notemos que os textos de Marcos, Lucas e 1Coríntios são peremptórios
e, além disto, são anteriores ao de Mateus (Mateus grego que hoje temos,
deve datar de 80 aproximadamente, o que é posterior a Marcos, Lucas e
1Coríntios); disto se segue que é pouco provável que os três tenham
eliminado uma cláusula restritiva de Jesus; é mais verossímil que o
tradutor do Evangelho de Mateus aramaico para o grego tenha acrescentado
a cláusula... Ele o terá feito em vista de uma problemática oriunda em
comunidades de maioria judeo-cristã (como eram as comunidades às quais
se destinava o Evangelho segundo Mateus).
Qual terá sido essa problemática?
- Deve-se depreender do sentido da palavra grega 'pornéia'.
1) Há quem a traduza por 'fornicação' ou 'adultério'; em consequência,
estaria dissolvido o casamento desde que uma das duas partes incorresse
em adultério. É assim que pensam e ensinam as comunidades cristas
ortodoxas orientais e as protestantes. Todavia observe-se que fornicação
ou adultério suporia, em grego, 'moichéia' e não 'pornéia'.
2) Mais acertado é dizer que 'pornéia' corresponde ao aramaico 'zenut',
que tinha o sentido de 'prostituição' ou 'união ilegítima'. Os rabinos
chamavam 'zenut' todo tipo de união incestuosa devida a um grau de
parentesco tornado ilícito pela Lei de Moisés. Com efeito, o capítulo 18
do Levítico enumera, entre outros, os seguintes impedimentos
matrimoniais:
- "Não descubrirás a nudez da mulher do teu irmão, pois é a própria
nudez de teu irmão" (Levítico 18, 16). Isto é: o viúvo não se case com
uma cunhada solteira.
- "Não descobrirás a nudez de uma mulher e de sua filha; não tomarás a
filha do seu filho, nem a filha de sua filha, para lhes descobrir a
nudez. Elas são a tua própria carne; isto seria um incesto" (Levítico
18, 17).
Uniões desse tipo e outras enumeradas em Levítico 18 podiam ser
legalmente contraídas entre pagãos anteriormente à sua conversão ao
Cristianismo. Uma vez feitos cristãos, tais fiéis de origem grega deviam
suscitar dificuldades aos judeo-cristãos legalistas de suas comunidades
cristãs. Daí a cláusula de Mateus 5,32s e 19,9, que permitia dissolver
tais uniões que a Lei de Moisés considerava ilegítimas. Essa cláusula
terá correspondido a uma decisão de comunidades compostas, em maioria,
por judeo-cristãos, a fim de preservar a boa paz entre eles e os
cristãos provenientes do Paganismo. Deve ter tido vigência geográfica e
cronológicamente limitada (enquanto houvesse tais judeo-cristãos
legalistas na Igreja); assemelha-se às cláusulas de Tiago adotadas em
caráter provisório pelo Concílio de Jerusalém em 49; cf. Atos 15, 23-29.
Esta explicação de Mateus 5,32s e 19,9, como se vê, não afeta o caráter
indissolúvel do matrimônio tal como proposto por Jesus em Marcos, Lucas e
1Coríntios.
1.2. A atual praxe da Igreja
É, pois, indissolúvel o matrimônio sacramental validamente contraído e
carnalmente consumado. No caso de séria problemática na vida conjugal, a
Igreja admite que se faca uma revisão do processo matrimonial para
averiguar se houve, na raiz do casamento, algum impedimento (falta de
sanidade mental, erro de pessoa, pressão física ou moral...) que tenha
tornado nulo o matrimônio. Desde que se possa concluir que de fato o
matrimônio foi contraído em condições de nulidade, a Igreja o declara;
ela não anula o matrimônio, mas declara que ele sempre foi nulo. As duas
partes interessadas são tidas como solteiras.
A lista de impedimentos que tornam nulo o casamento, encontra-se na
Revista Pergunte e Responderemos nº 373 (1993), páginas 294 e seguintes.
2. Dispensa do Vínculo Natural
Há casos em que o matrimônio validamente contraído no plano natural é
dissolvido pela Igreja em favor de um matrimônio sacramental.
Examinemo-los. Com outras palavras: a Igreja não tem o poder de
dissolver um casamento sacramental validamente contraído e consumado.
Quando, porém, o matrimônio não é sacramental (é sustentado pelo vínculo
natural apenas), a Igreja, em casos raros, pode d¡ssolvê-lo em vista da
fé ou de uma vivência matrimonial sacramental.
2.1. O Privilégio Paulino (cânones 1143-1147)
Em 1Coríntios 7,15 São Paulo considera o caso de dois pagãos unidos pelo
vínculo natural; se um deles se converte à fé católica e o(a) consorte
pagã(o) lhe torna difícil a vida conjugal, o Apostólo autoriza a parte
católica a separar-se para contrair novas núpcias, contanto que o faça
com um irmão ou uma irmã na fé. Antes, porém, da separação, é necessário
interpelar a parte não-batizada, perguntando-lhe se quer receber o
Batismo ou se, pelo menos, aceita coabitar pacificamente com a parte
batizada, sem ofensas ao Criador. Isto se explica pelo fato de que, para
o fiel católico, o matrimônio sacramental é obrigatório; ou ele o
contrai com o
cônjuge pagão ou, se este não o propicia, contrai-o com uma pessoa
católica. Cf. cânones 1143-1147.
2.2. O Privilégio Petrino / Privilégio da Fé (cânones 1148-1150)
O privilegio da fé é como que uma extensão do anterior. Como dito, a
Igreja não pode dissolver um casamento sacramental validamente contraído
e consumado. Há, porém, uniões matrimoniais não-sacramentais entre
pessoas não-batizadas. Suponhamos que alguma dessas uniões fracasse: em
consequência, uma das duas partes (convertida ao Catolicismo ou não)
quer contrair novas núpcias com uma pessoa católica, habilitada a
receber o sacramento do matrimônio. Esta pessoa católica pode então
recorrer à Santa Sé e pedir a dissolução do vínculo natural do(a)
seu(sua) pretendente, assim como a eventual dispensa do impedimento de
disparidade de culto (caso se trate de um judeu, um muçulmano, um
budista...); realiza-se então a cerimônia do casamento católico. Está
claro, porém, que os cônjuges que se separam, deverão prover a
subsistência e a educação (católica, se possível) dos respectivos
filhos.
O privilégio petrino ou da fé tem especial aplicação nos países em que
vigora a poligamia. Se o homem não-batizado que tenha simultaneamente
várias esposas não-batizadas, receber o Batismo na Igreja Católica,
poderá escolher a mulher que preferir, e deverá casar-se com ela na
Igreja (observadas as prescrições relativas a matrimônio de disparidade
de culto, se for o caso). O mesmo vale para a mulher não-batizada que
tenha simultaneamente vários maridos não-batizados. É evidente, porém,
que o homem que se converte, tem que prover as necessidades das esposas
afastadas, segundo as normas da justiça e da caridade; cf. cânon 1148.
Diz-se que a dissolução do vínculo natural em favor de um casamento
sacramental se faz para o bem da fé ('in bonum fidei'), isto é, para
permitir que ao menos um dos cônjuges (a parte católica) se possa casar
de acordo com a sua fé ou na Igreja.
3. Dissolução do matrimônio não-consumado (cânon 1142)
Diz o cânon 1142:
- "O matrimônio não-consumado entre batizados ou entre uma parte
batizada e outra não-batizada pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice
por justa causa, a pedido de ambas as partes ou de uma delas, mesmo que a
outra se oponha".
Este caso pode ocorrer; todavia não é fácil comprovar que não houve
consumação carnal do matrimônio. O cânon n° 1061 observa que a
consumação do matrimônio deve ser praticada 'humano modo', isto é, de
modo livre e normal; na hipótese contrária, não se pode falar de
consumação. A exigência de modo humano é muito oportuna, pois exclui os
casos de inseminação artificial (mesmo que desta nasça uma criança);
exclui também os casos em que a esposa é constrangida ou colhida num
momento de transtorno mental provisório. Outrora julgava-se que o
matrimônio estaria consumado e feito indissolúvel mesmo que a esposa,
recusando por medo iniciar a vida sexual, fosse violentada.
Como se vê, a temática matrimônio é muito complexa. O que há de novo na
legislação da Igreja datada de 1983, é a compreensão mais apurada do
psiquismo humano e das suas potencialidades, como também dos seus
limites. Este fator é importantíssimo, pois não se pode julgar o
comportamento de alguém unicamente pelo seu foro externo. É decisivo o
foro interno, que nem sempre transparece. Em consequência, verifica-se
que muitos matrimônios outrora tidos como válidos hoje podem ser
considerados nulos, porque faltaram ao(s) nubente(s) as condições
psicológicas para contrair as obrigações matrimoniais.
4. Divorciados Recasados e Eucaristia
Tem-se colocado com insistência a questão: um casal de divorciados
unidos apenas por um contrato civil não poderia receber os sacramentos,
especialmente a Comunhão Eucarística? Multiplicam-se tais casos; as
núpcias civis parecem levar dois interessados à harmonia de um autêntico
casal vinculado por amor sincero. Por que lhes negar o acesso aos
sacramentos?
Tal questionamento toca um ponto delicado da Moral Católica. Com efeito;
o sacramento do matrimônio é indissolúvel; por isto qualquer nova união
contraída por um dos cônjuges enquanto o outro ainda vive é tida como
violação ilícita do vínculo sacramental, violação que gera um estado de
vida contrário à Lei de Deus e, por isto, não habilitado para receber a
Eucaristia.
Para renovar a consciência desta doutrina frente à problemática
contemporânea, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou aos 14 de
setembro de 1994 uma "Carta dirigida aos Bispos da Igreja Católica a
respeito da recepção da Comunhão Eucarística por parte de fiéis
divorciados novamente casados". Deste documento extraímos o seguinte
trecho:
"Face as novas propostas pastorais acima mencionadas, esta
Congregação considera, pois, seu dever reafirmar a doutrina e a
disciplina da Igreja nesta matéria. Por fidelidade à palavra de Jesus
Cristo[1], a Igreja sustenta que não pode reconhecer como válida uma
nova união se o primeiro matrimônio foi válido. Se os divorciados se
casam civilmente, ficam numa situação objetivamente contrária à lei de
Deus. Por isso, não podem aproximar-se da Comunhão Eucarística, enquanto
persiste tal situação.
Esta norma não tem, de forma alguma, um caráter punitivo ou
discriminatório para com os divorciados novamente casados, mas exprime
antes uma situação objetiva que, por si, torna impossível o acesso à
Comunhão Eucarística. Não podem ser admitidos, já que o seu estado e
condições de vida contradizem objetivamente àquela união de amor entre
Cristo e a Igreja, significada e atuada na Eucaristia. Há, além disso,
um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à
Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da
doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimônio.
Para os fiéis que permanecem em tal situação matrimonial, o acesso à
Comunhão Eucarística é aberto unicamente pela absolvição sacramental,
que pode ser dada só aqueles que, arrependidos de ter violado o sinal da
Aliança e da fidelidade a Cristo, estão sinceramente dispostos a uma
forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do
matrimônio. Isto tem como consequência, concretamente, que, quando o
homem e a mulher, por motivos sérios - como, por exemplo, a educação dos
filhos - não se podem separar, assumem a obrigação de viver em plena
continência, isto é, de abster-se dos atos próprios dos cônjuges. Neste
caso podem aproximar-se da Comunhão Eucarística, permanecendo firme
todavia a obrigação de evitar o escândalo".
Com outras palavras: os divorciados que vivem nova união não-sacramental
podem ter acesso aos sacramentos, inclusive à Eucaristía, caso se
disponham a viver sob o mesmo teto como ¡rmão e irmã ou abstendo-se de
relações sexuais. Desde que cumpram esta condição, procurem os
sacramentos numa igreja em que não são conhecidos a fim de evitar
mal-entendidos e escândalos por parte dos fiéis.
Em sua Exortação Apostólica "Familiaris Consortio" (n° 84), o Papa João
Paulo II, em tom muito pastoral, refere-se à problemática:
- "Juntamente com o Sínodo exorto vivamente os pastores e a inteira
comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, promovendo com caridade
solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e
melhor devendo, enquanto batizados, participar na sua vida. Sejam
exortados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da Missa,
a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as
iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé
cristã, a
cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a
dia, a graça de Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se
mãe misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança".
A Igreja tem consciência de que a sua legislação relativa ao matrimônio é
exigente; mas ela também sabe que, assim procedendo, ela está guardando
fidelidade a Cristo e contribuindo para o bem da humanidade, já que a
Ética não se decide pelo comportamento da maioria, mas tem princípios
perenes, que garantem a dignidade e o verdadeiro bem-estar da
humanidade.
_________
NOTA:
NOTA:
[1] Marcos 10,11-12: "Quem repudia sua mulher e casa com outra,
comete adultério em relação à primeira; e, se uma mulher repudia seu
marido e casa com outro, comete adultério"
- Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 473, págs. 453-459, outubro/2001.
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