A Inquisição não foi criada de uma só vez, nem procedeu do mesmo modo no decorrer dos séculos. Por isto distinguem-se:
1) A lnquisição Medieval, voltada contra as heresias cátara e valdense nos séculos XII-XIII e contra falsos misticismos nos séculos XIV-XV;
2) A Inquisição Espanhola,
instituída em 1.478 por iniciativa dos reis Fernando e Isabel; visando
principalmente aos judeus e muçulmanos, tornou-se poderoso instrumento
do absolutismo dos monarcas espanhóis até o século XIX, a ponto de quase
não poder ser considerada instituição eclesiástica (não raro a
lnquisição Espanhola procedeu independentemente de Roma, resistindo à
intervenção da Santa Sé, porque o rei de Espanha a esta se opunha);
3) A lnquisição Romana (também dita Santo Ofício) instituída em 1.542 pelo Papa Paulo III, em vista do surto do protestantismo.
Apesar
das modalidades próprias, a Inquisição Medieval e a Romana foram
movidas por princípios e mentalidade características. Passamos a
examinar essa mentalidade e os procedimentos de tal instituição,
principalmente como nos são transmitidos por documentos medievais.
Antecedentes
da Inquisição contra os hereges a Igreja antiga aplicava penas
espirituais, principalmente a excomunhão; não pensava em usar a força
bruta. Quando, porém, o Imperador romano se tornou cristão, a situação
dos hereges mudou. Sendo o Cristianismo religião de Estado, os Césares
quiseram continuar a exercer para com este os direitos dos imperadores
romanos (Pontífices Maximi) em relação à religião pagã; quando
arianos, perseguiam os católicos; quando católicos, perseguiam os
hereges. A heresia era tida como um crime civil, e todo atentado contra a
religião oficial como atentado contra a sociedade; não se deveria ser
mais clemente para com um crime cometido contra a Majestade Divina do
que para com os crimes de lesa-majestade humana.
As
penas aplicadas, do século IV em diante, eram geralmente a proibição de
fazer testamento, a confiscação dos bens, o exílio. A pena de morte foi
infligida, pelo poder civil, aos maniqueus e aos donatistas; aliás, já
Diocleciano em 300 parece ter decretado a pena de morte pelo fogo para
os maniqueus, que eram contrários à matéria e aos bens materiais.
Agostinho, de início, rejeitava qualquer pena temporal para os hereges. Vendo, porém, os danos causados pelos donatistas (circumcelliones)
propugnava os açoites e o exílio, não a tortura nem a pena de morte. Já
que o Estado pune o adultério, argumentava, deve punir também a
heresia, pois não é pecado mais leve a alma não conservar fidelidade (fides,
fé) a Deus do que a mulher trair o marido (epist. 185, n. 21, a
Bonifácio). Afirmava, porém, que os infiéis não devem ser obrigados a
abraçar a fé, mas os hereges devem ser punidos e obrigados ao menos a
ouvir a verdade.
As
sentenças dos Padres da lgreja sobre a pena de morte dos hereges
variavam. São João Crisóstomo (- 407) Bispo de Constantinopla,
baseando-se na parábola do joio e do trigo, considerava a execução de um
herege como culpa gravíssima; não excluía, porém, medidas repressivas. A
execução de Prisciliano, prescrita por Máximo Imperador em Tréviris
(385) foi geralmente condenada pelos porta-vozes da lgreja,
principalmente por São Martinho e Santo Ambrósio.
Das
penas infligidas pelo Estado aos hereges não constava a prisão; esta
parece ter tido origem nos mosteiros, donde foi transferida para a vida
civil. Os reis merovíngios e carolíngios castigavam crimes eclesiásticos
com penas civis assim como aplicavam penas eclesiásticas a crimes
civis.
Chegamos assim ao fim do primeiro milênio. A Inquisição teria origem pouco depois.
No antigo Direito Romano, o juiz não empreendia a procura dos
criminosos; só procedia ao julgamento depois que lhe fosse apresentada a
denúncia. Até à Alta ldade Média, o mesmo se deu na Igreja; a
autoridade eclesiástica não procedia contra os delitos se estes não lhe
fossem previamente apresentados. No decorrer dos tempos, porém, esta
praxe mostrou-se insuficiente. Além disto, no séc. XI apareceu na Europa
nova forma de delito religioso, isto é, uma heresia fanática e
revolucionária, como não houvera até então: O catarismo (do grego katharós, puro) ou o movimento dos albigenses (de Albi, cidade da França meridional, onde os hereges tinham seu foco principal).
Considerando
a matéria por si os cátaros rejeitavam não somente a face visível da
lgreja, mas também instituições básicas da vida civil — o matrimônio, a
autoridade governamental, o serviço militar — e enalteciam o suicídio.
Destarte constituíam grave ameaça não somente para a fé cristã, mas
também para a vida pública.
Em
bandos fanáticos, às vezes apoiados por nobres senhores, os cátaros
provocavam tumultos, ataques às igrejas etc., por todo o decorrer do
séc. XI até 1.150 aproximadamente, na França, na Alemanha, nos
Países-Baixos... O povo, com a sua espontaneidade, e a autoridade civil,
se encarregavam de os reprimir com violência: Não raro o poder régio da
França, por iniciativa própria e a contragosto dos bispos, condenou à
morte pregadores albigenses, visto que solapavam os fundamentos da ordem
constituída.
Foi
o que se deu, por exemplo, em Orleães (1.017) onde o Rei Roberto,
informado de um surto de heresia na cidade, compareceu pessoalmente,
procedeu ao exame dos hereges e os mandou lançar ao fogo; a causa da
civilização e da ordem pública se identificava com a fé! Entrementes a
autoridade eclesiástica limitava-se a impor penas espirituais
(excomunhão, interdito, etc.) aos albigenses, pois até então nenhuma das
muitas heresias conhecidas havia sido combatida por violência física;
Santo Agostinho (- 430) e antigos bispos, São Bernardo (- 1.154), S.
Norberto (- 1.134) e outros mestres medievais eram contrários ao uso da
forma ("Sejam os hereges conquistados não pelas armas, mas pelos argumentos", admoestava São Bernardo, In Cant, serm. 64).
Não são casos isolados os seguintes:
Em
1.144 na cidade de Lião o povo quis punir violentamente um grupo de
inovadores que aí se introduzira; o clero, porém, os salvou, desejando a
sua conversão, e não a sua morte.
Em
1.077 um herege professou seus erros diante do bispo de Cambraia; a
multidão de populares lançou-se então sobre ele, sem esperar o
julgamento, encerrando-o numa cabana, à qual atearam o fogo!
Contudo,
em meados do século XII, a aparente indiferença do clero se mostrou
insustentável: Os magistrados e o povo exigiam colaboração mais direta
na repressão do catarismo.
Muito
significativo, por exemplo, é o episódio seguinte: O Papa Alexandre
III, em 1.162, escreveu ao Arcebispo de Reims e ao Conde de Flândria, em
cujo território os cátaros provocavam desordens: "Mais vale
absolver culpados do que, por excessiva severidade, atacar a vida de
inocentes... A mansidão mais convém aos homens da Igreja do que a
dureza.. Não queiras ser justo demais (noli nimium esse iustus)."
Informado desta admoestação pontifícia, o Rei Luís VII de França, irmão
do referido arcebispo, enviou ao Papa um documento em que o
descontentamento e o respeito se traduziam simultaneamente: "Que vossa prudência dê atenção toda particular a essa peste (a heresia) e a suprima antes que possa crescer. Suplico-vos para bem da fé cristã, concedei todos os poderes neste Campo ao Arcebispo (do Reims) ele
destruirá os que assim se insurgem contra Deus, sua justa severidade
será louvada por todos aqueles que nesta terra são animados de
verdadeira piedade. Se procederdes de outro modo, as queixas não se
acalmarão facilmente e desencadeareis contra a Igreja Romana as
violentas recriminações da opinião pública." (Martene, Amplissima Collectio II 638 s).
As consequências deste intercâmbio epistolar não se fizeram esperar muito:
O Concílio Regional de Tours em 1.163, tomando medidas repressivas
contra a heresia, mandava inquirir (procurar) os seus agrupamentos
secretos. Por fim, a assembleia de Verona (Itália) à qual compareceram o
Papa Lúcio III, o Imperador Frederico Barba-roxa, numerosos bispos,
prelados e príncipes, baixou, em 1.184, um decreto de grande
importância: O poder eclesiástico e o civil, que até então haviam agido
independentemente um do outro (aquele impondo penas espirituais, este
recorrendo à força física) deveriam combinar seus esforços em vista de
mais eficientes resultados: Os hereges seriam doravante não somente
punidos, mas também procurados (inquiridos); cada bispo inspecionaria,
por si ou por pessoas de confiança uma ou duas vezes por ano, as
paróquias suspeitas; os condes, barões e as demais autoridades civis os
deveriam ajudar sob pena de perder seus cargos ou ver o interdito
lançado sobre as suas terras; os hereges depreendidos ou abjurariam seus
erros ou seriam entregues ao braço secular, que lhes imporia a sanção
devida.
Assim
era instituída a chamada "Inquisição episcopal", a qual, como mostram
os precedentes, atendia a necessidades reais e a clamores exigentes
tanto dos monarcas e magistrados civis como do povo cristão;
independentemente da autoridade da lgreja, já estava sendo praticada a
repressão física das heresias. No decorrer do tempo, porém, percebeu-se
que a inquisição episcopal ainda era insuficiente para deter os
inovadores; alguns bispos, principalmente no sul da França, eram
tolerantes; além disto, tinham seu raio de ação limitado às respectivas
dioceses, o que lhes vedava uma campanha eficiente. À vista disto, os
Papas, já em fins do século XII, começaram a nomear legados especiais,
munidos de plenos poderes para proceder contra a heresia onde quer que
fosse.
Destarte surgiu a "Inquisição Pontifícia" ou "legatina",
que a princípio ainda funcionava ao lado da episcopal, aos poucos,
porém, a tornou desnecessária. A Inquisição papal recebeu seu caráter
definitivo e sua organização básica em 1.233, quando o Papa Gregório IX
confiou aos dominicanos a missão de Inquisidores; havia doravante, para
cada nação ou distrito inquisitorial, um Inquisidor Mor, que trabalharia
com a assistência de numerosos oficiais subalternos (consultores,
jurados, notários...) em geral independentemente do bispo em cuja
diocese estivesse instalado. As normas do procedimento inquisitorial
foram sendo sucessivamente ditadas por Bulas pontifícias e decisões de
Concílios.
Entrementes
a autoridade civil continuava a agir, com zelo surpreendente contra os
sectários. Chama a atenção, por exemplo, a conduta do Imperador
Frederico II, um dos mais perigosos adversários que o Papado teve no
séc. XIII. Em 1.220 este monarca exigiu de todos os oficiais de seu
governo prometessem expulsar de suas terras os hereges reconhecidos pela
lgreja; declarou a heresia crime de lesa-majestade, sujeito à pena de
morte e mandou dar busca aos hereges. Em 1.224 publicou decreto mais
severo do que qualquer das leis citadas pelos reis ou Papas anteriores:
As autoridades civis da Lombardia deveriam não somente enviar ao fogo
quem tivesse sido comprovado herege pelo bispo, mas ainda cortar a
língua aos sectários a quem, por razões particulares, se houvesse
conservado a vida. E possível que Frederico II visasse a interesses
próprios na campanha contra a heresia; os bens confiscados redundariam
em proveito da coroa.
Não
menos típica é a atitude de Henrique II, rei da Inglaterra: Tendo
entrado em luta contra o arcebispo Tomás Becket, primaz de Cantuária, e o
Papa Alexandre III, foi excomungado. Não obstante, mostrou-se um dos
mais ardorosos repressores da heresia no seu reino: Em 1185, por
exemplo, alguns hereges da Flândria tendo-se refugiado na Inglaterra, o
monarca mandou prendê-los, marcá-los com ferro em brasa na testa e
expô-los, assim desfigurados, ao povo; além disto, proibiu aos seus
súditos lhes dessem asilo ou Ihes prestassem o mínimo serviço.
Estes
dois episódios, que não são únicos no seu gênero, bem mostram que o
proceder violento contra os hereges, longe de ter sido sempre inspirado
pela suprema autoridade da Igreja, foi não raro desencadeado
independentemente desta, por poderes que estavam em conflito com a
própria lgreja. A inquisição, em toda a sua história, se ressentiu dessa
usurpação de direitos ou da demasiada ingerência das autoridades civis
em questões que dependem primeiramente do foro eclesiástico.
1)
A Igreja, nos seus onze primeiros séculos, não aplicava penas temporais
aos hereges, mas recorria às espirituais (excomunhão, interdito,
suspensão ...). Somente no século XII passou a submeter os hereges a
punições corporais. E por quê?
2)
As heresias que surgiram-no século XI (as dos cátaros e valdenses),
deixavam de ser problemas de escola ou academia, para ser movimentos
sociais anarquistas, que contrariavam a ordem vigente e convulsionavam
as massas com incursões e saques. Assim tornavam-se um perigo público.
3)
O Cristianismo era patrimônio da sociedade, à semelhança da prática e
da família hoje. Aparecia como o vínculo necessário entre os cidadãos ou
o grande bem dos povos; por conseguinte, as heresias, especialmente as
turbulentas, eram tidas como crimes sociais de excepcional gravidade.
4)
Não é, pois, de estranhar que as duas autoridades - a civil e a
eclesiástica tenham finalmente entrado em acordo para aplicar aos
hereges as penas reservadas pela legislação da época aos grandes
delitos.
5)
A lgreja foi levada a isto, deixando sua antiga posição, pela
insistência que sobre ela exerceram não somente monarcas hostis, como
Henrique II da Inglaterra e Frederico Barba-roxa da Alemanha, mas também
reis piedosos e fiéis ao Papa, como Luís VII da França.
6)
De resto, a Inquisição foi praticada pela autoridade civil mesmo antes
de estar regulamentada por disposições eclesiásticas. Muitas vezes o
poder civil se sobrepôs ao eclesiástico na procura de seus adversários
políticos.
7)
Segundo as categorias da época, a Inquisição era um progresso para
melhor em relação ao antigo estado de coisas, em que as populações
faziam justiça pelas próprias mãos. E de notar que nenhum dos Santos
medievais (nem mesmo S. Francisco de Assis, tido como símbolo da
mansidão) levantou a voz contra a Inquisição, embora soubessem protestar
contra o que Ihes parecia destoante do ideal na lgreja.
Procedimentos da Inquisição
As
táticas utilizadas pelos Inquisidores são-nos hoje conhecidas, pois
ainda se conservaram manuais de instruções práticas entregues ao uso dos
referidos oficiais. Quem lê tais textos, verifica que as autoridades
visavam a fazer dos juízes inquisitoriais autênticos representantes da
justiça e da causa do bem. Bernardo de Gui (séc. XIV) por exemplo, tido como um dos mais severos inquisidores, dava as seguintes normas aos seus colegas:
"O
Inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zelo pela verdade
religiosa, pela salvação das almas e pela extirpação das heresias. Em
meio às dificuldades permanecerá calmo, nunca cederá à cólera nem à
indignação... Nos casos duvidosos, seja circunspecto, não dê fácil
crédito ao que parece provável e muitas vezes não é verdade; também não
rejeite obstinadamente a opinião contrária, pois o que parece improvável frequentemente acaba por ser comprovado como verdade... O amor da
verdade e a piedade que devem residir no coração de um juiz, brilhem em
seus olhos, a fim de que suas decisões jamais possam parecer ditadas
pela cupidez e a crueldade." (Prática VI p... ed. Douis 232 s).
Já
que mais de uma vez se encontram instruções tais nos arquivos da
Inquisição, não se poderia crer que o apregoado ideal do Juiz
Inquisidor, ao mesmo tempo eqüitativo e bom, se realizou com mais
freqüência do que comumente se pensa? Não se deve esquecer, porém (como
adiante mais explicitamente se dirá) que as categorias pelas quais se
afirmava a justiça na Idade Média, não eram exatamente as da época
moderna...
Além
disto, levar-se-á em conta que o papel do juiz, sempre difícil, era
particularmente árduo nos casos da Inquisição: O povo e as autoridades
civis estavam profundamente interessados no desfecho dos processos; pelo
que, não raro exerciam pressão para obter a sentença mais favorável a
caprichos ou a interesses temporais; às vezes, a população obcecada
aguardava ansiosamente o dia em que o veredictum do juiz entregaria ao
braço secular os hereges comprovados. Em tais circunstâncias não era
fácil aos juízes manter a serenidade desejável. Dentre as táticas
adotadas pelos Inquisidores, merecem particular atenção a tortura e a
entrega ao poder secular (pena de morte).
A
tortura estava em uso entre os gregos e romanos pré-cristãos que
quisessem obrigar um escravo a confessar seu delito. Certos povos
germânicos também a praticavam. Em 866, porém, dirigindo-se aos
búlgaros, o Papa Nicolau I a condenou formalmente. Não obstante, a
tortura foi de novo adotada pelos tribunais civis da Idade Média nos
inícios do séc. XII, dado o renascimento do Direito Romano. Nos
processos inquisitoriais, o Papa Inocêncio IV acabou por introduzi-la em
1.252, com a cláusula: "Não haja mutilação de membros nem perigo de morte para o réu". O Pontífice, permitindo tal praxe, dizia conformar-se aos costumes vigentes em seu tempo (Bullarum amplissima collectio II 326).
Os
Papas subseqüentes, assim como os Manuais dos lnquisidores, procuraram
restringir a aplicação da tortura; só seria lícita depois de esgotados
os outros recursos para investigar a culpa e apenas nos casos em que já
houvesse meia-prova do delito ou, como dizia a linguagem técnica, dois "índices veementes"
deste, a saber: O depoimento de testemunhas fidedignas, de um lado e,
de outro lado, a má fama, os maus costumes ou tentativas de fuga do réu.
O Concílio de Viena (França) em 1.311 mandou outrossim que os
Inquisidores só recorressem a tortura depois que uma comissão julgadora e
o bispo diocesano a houvessem aprovado para cada caso em particular.
Apesar de tudo que a tortura apresenta de horroroso, ela tem sido
conciliada com a mentalidade do mundo moderno ... ainda estava
oficialmente em uso na França do séc. XVIII e tem sido aplicada até
mesmo em nossos dias... Quanto à pena de morte, reconhecida pelo antigo
Direito Romano, estava em vigor na jurisdição civil da Idade Média.
Sabe-se, porém, que as autoridades eclesiásticas eram contrárias à sua
aplicação em casos de lesa-religião. Contudo, após o surto do catarismo
(séc. XII) alguns canonistas começaram a julgá-la oportuna, apelando
para o exemplo do Imperador Justiniano, que no Séc. VI a infligira aos
maniqueus. Em 1.199 o Papa Inocêncio III dirigia-se aos magistrados de
Viterbo nos seguintes termos:
"Conforme
a lei civil, os réus de lesa-majestade são punidos com a pena capital e
seus bens são confiscados. Com muito mais razão, portanto, aqueles que,
desertando a fé, ofendem a Jesus, o Filho do Senhor Deus, devem ser
separados da comunhão cristã e despojados de seus bens, pois muito mais
grave é ofender a Majestade Divina do que lesar a majestade humana." (Epist. 2,1).
Como se vê, o Sumo Pontífice com essas palavras desejava apenas
justificar a excomunhão e a confiscação de bens dos hereges;
estabelecia, porém, uma comparação que daria ocasião a nova praxe... O
Imperador Frederico II soube deduzir-lhe as últimas conseqüências: Tendo
lembrado numa Constituição de 1.220 a frase final de Inocêncio III, o
monarca, em 1.224, decretava francamente para a Lombaria a pena de morte
contra os hereges e, já que o Direito antigo assinalava o fogo em tais
casos, o Imperador os condenava a ser queimados vivos. Em 1.230 o
dominicano Guala, tendo subido à cátedra episcopal de Bréscia (Itália),
fez aplicação da lei imperial na sua diocese. Por fim, o Papa Gregório
IX, que tinha intercâmbio freqüente com Guala, adotou o modo de ver
deste bispo: Transcreveu em 1230 ou 1231 a constituição imperial de
1.224 para o Registro das Cartas Pontifícias e em breve editou uma lei
pela qual mandava que os hereges reconhecidos pela Inquisição fossem
abandonados ao poder civil, para receber o devido castigo, castigo que,
segundo a legislação de Frederico II, seria a morte pelo fogo. Os
teólogos e canonistas da época se empenharam por justificar a nova
praxe; eis como fazia S. Tomás de Aquino:
"É
muito mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que
falsificar a moeda que é um meio de prover à vida temporal Se, pois, os
falsificadores de moedas e outros malfeitores são, a bom direito,
condenados à morte pelos príncipes seculares, com muito mais razão os
hereges, desde que sejam comprovados tais, podem não somente ser
excomungados, mas também em toda justiça ser condenados à morte." (Suma Teológica II/II 11,3c)
A
argumentação do Santo Doutor procede do princípio (sem dúvida,
autêntico em si) de que a vida da alma mais vale do que a do corpo; se,
pois, alguém pela heresia ameaça a vida espiritual do próximo, comete
maior mal do que quem assalta a vida corporal; o bem comum então exige a
remoção do grave perigo (veja-se também S. Teol. II/II 11,4c).
Contudo
as execuções capitais não foram tão numerosas quanto se poderia crer.
Infelizmente faltam-nos estatísticas completas sobre o assunto; consta,
porém, que o tribunal de Pamiers, de 1.303 a 1.324, pronunciou 75
sentenças condenatórias, das quais apenas cinco mandavam entregar o réu
ao poder civil (o que equivalia à morte); o lnquisidor Bernardo de Gui,
em Tolosa, de 1.308 a 1.323, proferiu 930 sentenças, das quais 42 eram
capitais; no primeiro caso, a proporção é de 1/15; no segundo caso, de
1/22. Não se poderia negar, porém, que houve injustiças e abusos da
autoridade por parte dos juízes inquisitoriais. Tais males se devem a
conduta de pessoas que, em virtude da fraqueza humana, não foram sempre
fiéis cumpridoras da sua missão.
Os
Inquisidores trabalhavam a distâncias mais ou menos consideráveis de
Roma, numa época em que, dada a precariedade de correios e comunicações,
não podiam ser assiduamente controlados pela suprema autoridade da
lgreja. Esta, porém, não deixava de os censurar devidamente, quando
recebia notícia de algum desmando verificado em tal ou tal região.
Famoso, por exemplo, é o caso de Roberto, o Bugro, Inquisidor-Mor de
França no século XIII.
O
Papa Gregório IX a princípio muito o felicitava por seu zelo. Roberto,
porém, tendo aderido outrora à heresia, mostrava-se excessivamente
violento na repressão da mesma. Informado dos desmandos praticados pelo
lnquisidor, o Papa o destituiu de suas funções e o mandou encarcerar.
Inocêncio IV, o mesmo Pontífice que permitiu a tortura nos processos da
inquisição, e Alexandre IV, respectivamente em 1.246 e 1.256, mandaram
aos Padres Provinciais e Gerais dos Dominicanos e Franciscanos,
depusessem os lnquisidores de sua Ordem que se tornassem notórios por
sua crueldade.
O
Papa Bonifácio VIII (1.294-1.303) famoso pela tenacidade e
intransigência de suas atitudes, foi um dos que mais reprimiram os
excessos dos inquisidores, mandando examinar, ou simplesmente anulando,
sentenças proferidas por estes. O Concílio regional de Narbona (França)
em 1.243 promulgou 29 artigos que visavam a impedir abusos do poder.
Entre outras normas, prescrevia aos lnquisidores só proferissem sentença
condenatória nos casos em que, com segurança, tivessem apurado alguma
falta, "pois mais vale deixar um culpado impune do que condenar um inocente." (cânon
23) Dirigindo-se ao Imperador Frederico II, pioneiro dos métodos
inquisitoriais, o Papa Gregório IX aos 15 de julho de 1.233 lhe lembrava
que "a arma manejada pelo Imperador
não devia servir para satisfazer aos seus rancores pessoais, com grande
escândalo das populações, com detrimento da verdade e da dignidade
imperial." (ep. saec. XIII 538-550).
Avaliação
Procuremos
agora formular um juízo sobre a Inquisição Medieval. Não é necessário
ao católico justificar tudo que, em nome desta, foi feito. É preciso,
porém, que se entendam as intenções e a mentalidade que moveram a
autoridade eclesiástica a instituir a Inquisição. Estas intenções,
dentro do quadro de pensamento da Idade Média, eram legítimas e,
diríamos até, deviam parecer aos medievais inspiradas por santo zelo.
Podem-se reduzir a quatro os fatores que influíram decisivamente no
surto e no andamento da Inquisição:
1)
Os medievais tinham profunda consciência do valor da alma e dos bens
espirituais. Tão grande era o amor à fé (esteio da vida espiritual) que
se considerava a deturpação da fé pela heresia como um dos maiores
crimes que o homem pudesse cometer (notem-se os textos de São Tomás e do
Imperador Frederico II atrás citados); essa fé era tão viva e
espontânea que dificilmente se admitiria viesse alguém a negar com boas
intenções um só dos artigos do Credo.
2)
As categorias de justiça na Idade Média eram um tanto diferentes das
nossas: Havia muito mais espontaneidade (que as vezes equivalia a rudez)
na defesa dos direitos. Pode-se dizer que os medievais, no caso,
seguiam mais o rigor da lógica do que a ternura do sentimentos; o
raciocínio abstrato e rígido neles prevalecia por vezes sobre o senso
psicológico (nos tempos atuais verifica-se quase o contrário: Muito se
apela para a psicologia e o sentimento, pouco se segue a lógica; os
homens modernos não acreditam muito em princípios perenes; tendem a tudo
julgar segundo critérios relativos e relativistas, critérios de moda e
de preferência subjetiva).
3)
A intervenção do poder secular exerceu profunda influência no
desenvolvimento da inquisição. As autoridades civis anteciparam-se na
aplicação da forma física e da pena de morte aos hereges; instigaram a
autoridade eclesiástica para que agisse energicamente; provocaram certos
abusos motivados pela cobiça de vantagens políticas ou materiais. De
resto, o poder espiritual e o temporal na Idade Média estavam, ao menos
em tese, tão unidos entre si que lhes parecia normal, recorressem um ao
outro em tudo que dissesse respeito ao bem comum. A partir dos inícios
do Séc. XIV a lnquisição foi sendo mais explorada pelos monarcas, que
dela se serviam para promover seus interesses particulares, subtraindo-a
às diretivas do poder eclesiástico, até mesmo encaminhando-a contra
este; é o que aparece claramente no Processo Inquisitório dos
Templários, movido por Filipe o Belo da França (1.285-1.314) à revelia
do Papa Clemente V. (cf. capítulo 25)
4)
Não se negará a fraqueza humana de Inquisidores e de oficiais seus
colaboradores. Não seria Iícito, porém, dizer que a suprema autoridade
da Igreja tenha pactuado com esses fatos de fraqueza; ao contrário,
tem-se o testemunho de numerosos protestos enviados pelos Papas e
Concílios a tais ou tais oficiais, contra tais leis e tais atitudes
inquisitoriais. As declarações oficiais da Igreja concernentes à
Inquisição se enquadram bem dentro das categorias da justiça medieval; a
injustiça se verificou na execução concreta das leis. Diz-se, de resto,
que cada época da história apresenta ao observador um enigma próprio na
Antigüidade remota, o que surpreende são os desumanos procedimentos de
guerra. No Império Romano, é a mentalidade dos cidadãos, que não
conheciam o mundo sem o seu Império (oikouméne — orbe habitado — Imperium)
nem concebiam o Império sem a escravatura. Na época contemporânea, é o
relativismo ou ceticismo público; é a utilização dos requintes da
técnica para "lavar o crânio", desfazer a personalidade, fomentar o ódio
e a paixão. Não seria então possível que os medievais, com boa fé na
consciência, tenham recorrido a medidas repressivas do mal que o homem
moderno, com razão, julga demasiado violentas? Quanto à Inquisição
Romana, instituída no Séc. XVI, era herdeira das leis e da mentalidade
da Inquisição Medieval. No tocante à Inquisição Espanhola, sabe-se que
agiu mais por influência dos monarcas da Espanha do que sob a
responsabilidade da suprema autoridade da Igreja.
Origem da Inquisição Espanhola
Os
reis Fernando e Isabel, visando a plena unificação de seus domínios,
tinham consciência de que existia uma instituição eclesiástica, a
Inquisição, oriunda na Idade Média com o fim de reprimir um perigo
religioso e civil dos séculos XI/XII (a heresia cátara ou albigense); a
este perigo pareciam assemelhar-se as atividades dos marranos (judeus) e
mouriscos (árabes) na Espanha do século XV.
1)
A Inquisição Medieval, que nunca fora muito ativa na península ibérica,
achava-se a mais ou menos adormecida na segunda metade do Séc. XV
Aconteceu, porém, que durante a Semana Santa de 1.478 foi descoberta em
Sevilha uma conspiração de marranos, a qual muito exasperou o público.
Então lembrou-se o rei Fernando de pedir ao Papa, reavivasse na Espanha a
antiga Inquisição, e a reavivasse sobre novas bases, mais promissoras
para o reino, confiando sua orientação ao monarca espanhol. Sixto IV,
assim solicitado, resolveu finalmente atender ao pedido de Fernando (ao
qual, depois de hesitar algum tempo, se associara Isabel). Enviou, pois,
aos reis da Espanha o Breve de 19 de novembro de 1.478, pelo qual "conferia
plenos poderes a Fernando e Isabel para nomearem dois ou três
Inquisidores, arcebispos, bispos ou outros dignitários eclesiásticos,
recomendáveis por sua prudência e suas virtudes, sacerdotes seculares ou
regulares, de quarenta anos de idade ao menos, e de costumes
irrepreensíveis, mestres ou bacharéis em Teologia, doutores ou
licenciados em Direito Canônico, os quais deveriam passar de maneira
satisfatória por um exame especial. Tais lnquisidores ficariam
encarregados de proceder contra os judeus batizados reincidentes no
judaísmo e contra todos os demais culpados de apostasia. o Papa delegava
a esses oficiais eclesiásticos a jurisdição necessária para instaurar
os processos dos acusados conforme o Direito e o costume; além disto,
autorizava os soberanos espanhóis a destituir tais Inquisidores e nomear
outros em seu lugar, caso isto fosse oportuno." (L.Pastor, Histoire des Papes
IV 370) Note-se bem que, conforme este edito, a lnquisição só
estenderia sua ação a cristãos batizados, não a judeus que jamais
houvessem pertencido a lgreja; a instituição era, pois, concebida como
órgão promotor de disciplina entre os filhos da Igreja, não como
instrumento de intolerância em relação às crenças não-cristãs.
Procedimentos da Inquisição Espanhola
Apoiados
na Licença Pontifícia, os reis da Espanha aos 17 de setembro de 1.480
nomearam lnquisidores, com sede em Sevilha, os dois dominicanos Miguel
Morillo e Juan Martins, dando-lhes como assessores dois sacerdotes
seculares. os monarcas.promulgaram também um compêndio de “Instruções”,
enviado a todos os tribunais da Espanha, constituindo como que um código
da Inquisição, a qual assim se tornava uma espécie de órgão do Estado
civil. Os Inquisidores entraram logo em ação, procedendo geralmente com
grande energia. Parecia que a lnquisição estava a serviço não da
Religião propriamente, mas dos soberanos espanhóis, os quais procuravam
atingir criminosos mesmo de categoria meramente política. Em breve,
porém, fizeram-se ouvir em Roma queixas diversas contra a severidade dos
Inquisidores. Sixto IV então escreveu sucessivas cartas aos monarcas da
Espanha, mostrando-lhes profundo descontentamento por quanto acontecia
em seu reino e baixando instruções de moderação para os juízes tanto
civis como eclesiásticos. Merece especial destaque neste particular o Breve
de 2 de agosto de 1.482, que é o Papa, depois de promulgar certas
regras coibitivas do poder dos Inquisidores, concluía com as seguintes
palavras: "Visto que somente a caridade nos toma semelhantes a Deus,
rogamos e exortamos o Rei e a Rainha, pelo amor de Nosso Senhor Jesus
Cristo, a fim de que imitem Aquele de quem é caracteristico ter sempre
compaixão e perdão. Queiram, portanto, mostrar-se indulgentes para com
os seus súditos da cidade e da diocese de Sevilha que confessam o erro e
imploram a misericórdia." Contudo, apesar das freqüentes
admoestações pontifícias, a Inquisição Espanhola ia-se tornando mais e
mais um órgão poderoso de influência e atividade do monarca nacional.
Para comprovar isto, basta lembrar o seguinte: A Inquisição no
território espanhol ficou sendo instituto permanente durante três
séculos a fio. Nisto diferia bem da Inquisição Medieval, a qual foi
sempre intermitente, tendo em vista determinados erros oriundos em tal
ou tal localidade. A manutenção permanente de um tribunal inquisitório
impunha avultadas despesas, que somente o Estado podia tomar a seu
cargo; foi o que se deu na Espanha: Os reis atribuíam a si todas as
rendas materiais da Inquisição (impostos, multas, bens confiscados) e
pagavam as respectivas despesas; conseqüentemente alguns historiadores,
referindo-se à Inquisição Espanhola, denominaram-na "Inquisição Régia".
Emancipada de Roma
A
fim de completar o quadro até aqui traçado, passemos a mais um pormenor
característico do mesmo. Os reis Fernando e Isabel visavam a corroborar
a Inquisição, emancipando-a do controle mesmo de Roma... Conceberam
então a idéia de dar à instituição um chefe único e plenipotenciário — o
Inquisidor-Mor — o qual julgaria na Espanha mesma os apelos dirigidos a
Roma. Para este cargo, propuseram à Santa Sé um religioso dominicano,
Tomás de Torquemada (Turrecremata, em latim) o qual em outubro
de 1483 foi realmente nomeado Inquisidor-Mor para todos os territórios
de Fernando e Isabel. Procedendo à nomeação escrevia o Papa Sixto IV a
Torquemada: "Os nossos caríssimos filhos em Cristo, o rei e a rainha
de Castela e Leão, nos suplicaram para que te designássemos como
Inquisidor do mal da heresia nos seus reinos de Aragão e Valença, assim
como no principado de Catalunha." (Bulla.ord. Praedicatorum
/ 622) O gesto de Sixto IV só se pode explicar por boa fé e confiança. O
ato era, na verdade, pouco prudente... Com efeito; a concessão
benignamente feita aos monarcas seria pretexto para novos e novos
avanços destes: Os sucessores de Torquemada no cargo de Inquisidor-Mor
já não foram nomeados pelo Papa, mas pelos soberanos espanhóis (de
acordo com critérios nem sempre louváveis).
Para
Torquemada e sucessores, foi obtido da Santa Sé o direito de nomearem
os lnquisidores regionais, subordinados ao Inquisidor-Mor. Mais ainda:
Fernando e Isabel criaram o chamado "Conselho Régio da Inquisição",
comissão de consultores nomeados pelo poder civil e destinados como que
a controlar os processos da Inquisição; gozavam de voto deliberativo em
questões de Direito civil, e de voto consultivo em temas de Direito
Canônico. Uma das expressões mais típicas da autonomia arrogante do
Santo ofício espanhol é o famoso processo que os Inquisidores moveram
contra o arcebispo primaz da Espanha, Bartolomeu Carranza, de Toledo.
Sem descer aos pormenores do acontecimento, notaremos aqui apenas que
durante dezoito anos contínuos a Inquisição Espanhola perseguiu o
venerável prelado, opondo-se a legados papais, ao Concílio Ecumênico de
Trento e ao próprio Papa, em meados do Séc. XVI. Frisando ainda um
particular, lembraremos que o rei Carlos III (1.759-1.788) constituiu
outra figura significativa do absolutismo régio no setor que vimos
estudando. Colocou-se peremptoriamente entre a Santa Sé e a Inquisição,
proibindo a esta que executasse alguma ordem de Roma sem licença prévia
do Conselho de Castela, ainda que se tratasse apenas de proscrição de
livros. O Inquisidor-Mor, tendo acolhido um processo sem permissão do
rei, foi logo banido para localidade situada a doze horas de Madrid; só
conseguiu voltar após apresentar desculpas ao rei, que as aceitou,
declarando: "O Inquisidor Geral pediu-me perdão, e eu lho concedo —
aceito agora os agradecimentos do tribunal — protegê-lo-ei sempre, mas
não se esqueça desta ameaça de minha cólera voltada contra qualquer
tentativa de desobediência." (cf. Desdevises du Dezart, L'Espagne de L'Ancien Regime. La Société 101 s).
A história atesta outrossim como a Santa Sé repetidamente decretou
medidas que visavam a defender os acusados frente à dureza do poder
régio e do povo. A Igreja em tais casos distanciava-se nitidamente da
lnquisição Régia, embora esta continuasse a ser tida como tribunal
eclesiástico. Assim aos 2 de dezembro de 1.530, Clemente VII conferiu
aos lnquisidores a faculdade de absolver sacramentalmente os delitos de
heresia e apostasia; destarte o Sacerdote poderia tentar subtrair do
processo público e da infâmia da Inquisição qualquer acusado que
estivesse animado de sinceras disposições para o bem. Aos 15 de junho de
1.531, o mesmo Papa Clemente VII mandava aos Inquisidores tomassem a
defesa dos mouriscos que, acabrunhados de impostos pelos respectivos
senhores e patrões, poderiam conceber ódio contra o Cristianismo. Aos 2
de agosto de 1.546, Paulo III declarava os mouriscos de Granada aptos
para todos os cargos civis e todas as dignidades eclesiásticas. Aos 18
de janeiro de 1.556, Paulo IV autorizava os sacerdotes a absolver em
confissão sacramental os mouriscos. Compreende-se que a Inquisição
Espanhola, mais e mais desvirtuada pelos interesses às vezes mesquinhos
dos soberanos temporais, não podia deixar de cair em declínio. Foi o que
se deu realmente nos séculos XVIII e XIX. Em conseqüência de uma
revolução, o Imperador Napoleão I interveio no governo da nação, aboliu a
Inquisição Espanhola por decreto de 4 de dezembro de 1.808. o rei
Fernando VII, porém, restaurou-a em 1.814, a fim de punir alguns de seus
súditos que haviam colaborado com o regime de Napoleão. Finalmente,
quando o povo se emancipou do absolutismo de Fernando VIl,
restabelecendo o regime liberal no país, um dos primeiros atos das
Cortes de Cadiz foi a extinção definitiva da Inquisição em 1.820. A
medida era, sem dúvida, mais do que oportuna, pois punha termo a uma
situação humilhante para a Santa Igreja.
Tomás de Torquemada
Tomás
de Torquemada nasceu em Valladolid (ou, segundo outros, em Torquemada)
no ano de 1420. Fez-se Religioso dominicano, exercendo por 22 anos o
cargo de Prior do convento de Santa-Cruz em Segóvia. Já aos 11 de
fevereiro de 1.482 foi designado por Sixto IV para moderar o zelo dos
lnquisidores espanhóis. No ano seguinte o mesmo Pontífice o nomeou
Primeiro Inquisidor de todos os territórios de Fernando e Isabel.
Extremamente austero para consigo mesmo, o frade dominicano usou de
semelhante severidade nos seus procedimentos judiciários. Dividiu a
Espanha em quatro setores inquisitoriais, que tinham como sedes
respectivas as cidades de Sevilha, Córdova, Jaen e Villa (Ciudad) Real.
Em 1.484 redigiu, para uso dos Inquisidores, uma "Instrução",
opúsculo que propunha normas para os processos inquisitoriais,
inspirando-se em tramites já usuais na Idade Média; esse libelo foi
completado por dois outros do mesmo autor, que vieram a lume
respectivamente em 1.490 e 1.498. O rigor de Torquemada foi levado ao
conhecimento da Sé de Roma; o Papa Alexandre VI, como dizem algumas
fontes históricas, pensou então em destitui-lo de suas funções; só não o
terá feito por deferência a corte da Espanha. O fato é que o Pontífice
houve por bem diminuir os poderes de Torquemada, colocando a seu lado
quatro assessores munidos de iguais faculdades (Breve de 23 de
junho de 1.494). Quanto ao número de vítimas ocasionadas pelas sentenças
de Torquemada, as cifras referidas pelos cronistas são tão pouco
coerentes entre si que nada se pode afirmar de preciso sobre o assunto.
Tomás de Torquemada ficou sendo, para muitos, a personificação da
intolerância religiosa, homem de mãos sanguinolentas... Os historiadores
modernos, porém, reconhecem exagero nessa maneira de conceituá-lo;
levando em conta o caráter pessoal de Torquemada, julgam que este
Religioso foi movido por sincero amor e verdadeira fé, cuja integridade
lhe parecia comprometida pelos falsos cristãos; daí o zelo
extraordinário com que procedeu. A reta intenção de Torquemada ter-se-á
traduzido de maneira pouco feliz. De resto, o seguinte episódio
contribui para desvendar outro traço, menos conhecido, do frade
dominicano: Em dada ocasião, foi levada ao Conselho Régio da Inquisição a
proposta de se impor aos muçulmanos ou a conversão ao Cristianismo ou o
exílio. Torquemada opôs-se a essa medida, pois queria conservar o
clássico princípio de que a conversão ao Cristianismo não pode ser
extorquida pela violência; por conseguinte, a Inquisição deveria
restringir sua ação aos cristãos apóstatas; estes, e somente estes, em
virtude do seu Batismo, tinham um compromisso com a Igreja Católica.
Como se vê Torquemada, no fervor mesmo do seu zelo, não perdeu o bom
senso neste ponto. Exerceu suas funções até à morte, aos 16/09/1.498.
Poder Régio e Inquisição em Portugal
Em
síntese: O Instituto Histórico e Geográfico do Brasil publicou os
Regimentos da Inquisição em Portugal (vigentes também no Brasil) datados
de 1.552, 1.613, 1.640 e 1.774 (este assinado pelo Marquês do Pombal).
São acompanhados de uma Introdução redigida pela Professora
Sônia Aparecida de Siqueira, que põe em evidência o fato de que a
Inquisição nunca foi uma instituição meramente eclesiástica, mas, em
virtude da lei do padroado, foi mais e mais dirigida pela Coroa de
Portugal em vista de seus interesses políticos. A Santa Sé teve de se
opor mais de uma vez aos processos da Inquisição, a fim de tutelar os
cristãos-novos e outros cidadãos julgados pelo Tribunal. A Inquisição
está sempre em foco. É motivo de acusações à Igreja, muitas vezes mal
fundamentadas ou repetidas como chavões, sem que o público tenha acesso
aos documentos básicos que nortearam a Inquisição. Poucas pessoas têm
contato direto com os arquivos e as fontes escritas do movimento
inquisitorial.
Eis
que o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB) publicou no
número 392 (ano 157) da sua revista, correspondente a julho/setembro
1996 (pp. 495-1.020) os Regimentos do Santo Ofício da Inquisição do
Reino de Portugal datados de 1552, 1613, 1640, 1774 (este assinado pelo
Marquês de Pombal), além de um Regimento sem data. Tal edição esteve aos
cuidados da Profª. Sônia Aparecida de Siqueira, sócia-correspondente do
IHGB em São Paulo, que escreveu longa Introdução a tais documentos.
Como nota o Prof. Arno Wehling, presidente do IHGB em 1996, a Dra- Sônia
Aparecida localizou a Inquisição e seus sucessivos regimentos nos
diferentes momentos históricos, sublinhando, inclusive, a progressiva
expansão do poder real sobre a instituição, culminando no regime
sectarista. (p. 495)
Como
se sabe, a Inquisição nunca (nem na Idade Média) foi um Tribunal
meramente eclesiástico. Isto era inconcebível outrora, dado que o Estado
era oficialmente cristão e, por isto, se julgava responsável pelos
interesses da fé cristã; a tal título intervinha ele em questões de foro
religioso, por vezes ditando normas à Igreja. Tal realidade se acentuou
na Península Ibérica (Espanha e Portugal) a partir do século XVI, em
virtude dos privilégios do padroado. Com efeito, já que os reis de
Espanha e Portugal eram descobridores de novas terras, às quais levavam a
fé católica, a Santa Sé lhes concedeu poderes especiais para
organizarem a vida da Igreja nas regiões recém-descobertas; daí a grande
ingerência nos assuntos religiosos, a título de colaboração com a
Igreja ... colaboração que redundou, aos poucos, em sufocação da
autoridade eclesiástica em favor dos interesses da Coroa.
Nas
linhas subseqüentes, apresentaremos as origens da Inquisição em
Portugal e alguns traços da explanação da Profª. Sônia Aparecida, que
põem em relevo a intervenção sempre mais prepotente dos monarcas em
assuntos inquisitoriais.
Origens da Inquisição Portuguesa
O
rei D. João III de Portugal (1521-57) desejava que o Papa estabelecesse
a Inquisição em seu reino, tendo em vista especialmente a eliminação
dos judeus não plenamente convertidos ao Cristianismo. Durante 27 anos,
S. Majestade e a Santa Sé se defrontaram, visto que o rei pedia poderes,
em matéria religiosa, que o Papa não lhe queria conceder: Assim,
conforme o monarca, o Inquisidor-mor seria escolhido pelo rei, assim
como os outros Inquisidores (subordinados), podendo estes últimos ser
não apenas clérigos, mas também juristas leigos, que passariam a ter a
mesma jurisdição que os eclesiásticos. Mais: Conforme o desejo do rei,
os Inquisidores estariam acima dos Bispos e dos Superiores das Ordens
Religiosas, de modo que poderiam processar e condenar eclesiásticos sem
consultar os respectivos prelados; os Bispos ficariam impedidos de
intervir em qualquer causa que os Inquisidores chamassem a si. Ainda: Os
Inquisidores poderiam impor excomunhões reservadas à Santa Sé e
levantar as que eram impostas pelos Bispos. Como se vê, o rei queria
desta maneira obter o controle total sobre os Bispos e a Igreja em
Portugal.
Finalmente
aos 17/12/1.531 o Papa Clemente VII concedeu a Inquisição em Portugal,
mas em termos que contrariavam às solicitações de D. João III: Em vez de
outorgar ao rei poderes para nomear os Inquisidores, o Papa nomeou
diretamente um Comissário da Sé Apostólica e Inquisidor no reino de
Portugal e nos seus domínios. Esse Comissário poderia nomear outros
Inquisidores, mas a sua autoridade não estava acima da dos Bispos, que
poderiam também, por seu lado, investigar as heresias.
Os
termos desta Bula ou concessão nunca foram aplicados em Portugal. O
Inquisidor nomeado, Frei Diogo da Silva, era o confessor do rei; não
aceitou o cargo, talvez por pressão do monarca. Apesar disto, em meio a
grande agitação popular, começaram a funcionar tribunais inquisitoriais
em algumas dioceses anarquicamente. Em conseqüência, o Papa suspendeu a
Inquisição e, alegando que o rei o enganara (escondendo-lhe a conversão
forçada de judeus no reinado de D. Manoel, 1.495-1.521) ordenou a
anistia aos judeus e a restituição dos bens confiscados (Bula de
07/04/1.535).
As
razões sobre as quais se baseavam tais decisões de Clemente VII, são
assaz significativas: A conversão dos judeus infiéis deve ser propiciada
mediante a persuasão e a doçura, das quais Cristo deu o exemplo,
respeitando sempre o livre arbítrio humano; a conversão violenta ou
extorquida dos judeus sob o reinado de D. Manoel era tida como façanha
que não se deveria reproduzir. A Santa Sé assim procurava defender e
proteger os cristãos-novos, vítimas do poder régio.
O
Papa Clemente VII, que resistira a D. João III, morreu em 1.534, tendo
por sucessor Paulo III. O rei voltou a insistir junto ao Pontífice para
conseguir o tipo de tribunal de Inquisição que atendia aos interesses da
Coroa. Não o obteve propriamente, mas por Bula de 23/05/1.536 Paulo III
restabeleceu a Inquisição em Portugal, nomeando três Inquisidores e
autorizando o rei a nomear outro; além disto, o Pontífice mandava que,
durante três anos, os nomes das testemunhas de acusação não fossem
acobertados por segredo e durante dez anos os bens dos condenados não
fossem confiscados; os Bispos teriam as mesmas faculdades que os
Inquisidores na pesquisa das heresias. Por intermédio de seu Núncio em
Lisboa, o Papa reservava a si o direito de fiscalizar o cumprimento da
Bula, de examinar os processos quando bem o entendesse e de decidir em
última instância.
É
a partir desta Bula (23/05/1.536) que se pode considerar estabelecida a
Inquisição em Portugal. O rei, que não se dava por satisfeito com as
disposições da Santa Sé, começou a burlá-las. Quis, antes do mais,
subtrair a Inquisição à vigilância do Pontífice e, para tanto, suscitou
incidentes numerosos a ponto de obrigar a partir o Núncio Capodiferro,
que tinha poderes para suspender o tribunal, caso não fossem respeitadas
as cláusulas de proteção aos cristãos-novos. Além disto, nomeou
Inquisidor o Infante D. Henrique, seu irmão, então Arcebispo de Braga
que, com seus 27 anos, não tinha idade legal para exercer tais funções.
Enfim aproveitava ou provocava ocasiões ou pretextos para fazer que o
público cresse na má fé dos judeus convertidos (cristãos novos): Assim
apareceu um cartaz nas portas da catedral e de outras igrejas de Lisboa,
anunciando a chegada próxima do Messias... Um alfaiate de Setúbal
apresentou-se ao público como Messias, o que não foi levado a sério pela
população, mas bastou para que os agentes do rei fizessem grandes
represálias e tentassem convencer Roma dos perigos do judaísmo em
Portugal.
Apesar
da má vontade do rei, o Papa fazia questão de manter sob seu controle o
Santo Ofício em Portugal. Reforçando normas anteriores, o Pontífice
emitiu nova Bula em 12/10/1.539, que proibia aduzir testemunhas secretas
e concedia outras garantias aos acusados, entre as quais o direito de
apelação para o Papa; determinava outrossim que os emolumentos dos
Inquisidores não fossem pagos mediante os bens dos prisioneiros.
Também esta Bula não foi observada em Portugal. O Papa então resolveu suspender a Inquisição pelo Breve
de 22/09/1.544; tomou a precaução de fazer publicar de surpresa em
Lisboa este documento, levado secretamente para lá por um novo Núncio. O
rei, profundamente golpeado, jogou a sua última cartada; requereu ao
Papa que revogasse a suspensão e restaurasse a Inquisição sem qualquer
limitação, e acrescentava a ameaça: "Se
Vossa Santidade não prover nisso, como é obrigado e dele se espera, não
poderei deixar de remediá-lo confiando em que não somente do que
suceder Vossa Santidade me haverá por sem culpa, mas também os príncipes
e os fiéis cristãos que o souberem, conhecerão que disso não sou causa
nem ocasião."
Tais
palavras continham a ameaça de desobediência formal ao Papa e de cisão
na Igreja. D. João III seguiu o conselho que lhe fora dado pelos seus
dois enviados à Santa Sé em 1.535: Negasse obediência ao Papa, imitando o
exemplo do rei Henrique VIII da Inglaterra. Entre a obediência ao Papa,
como fiel católico, e a rebeldia declarada que lhe permitisse instituir
um tribunal, que era no fundo um instrumento da política régia, o rei
de Portugal estava disposto a seguir a segunda via.
O
Pontífice via-se naquele momento (1.544/45) premido por outras graves
preocupações, como a convocação e a preparação do Concílio de Trento,
sobre o qual o Imperador Carlos V e outros monarcas tinham seus
interesses. Em conseqüência, acabou por aceitar os pontos principais da
solicitação de D. João III: Por Bula de 16/07/1.547, nomeou
lnquisidor-Geral o Cardeal Infante D. Henrique, e retirou aos Núncios em
Lisboa a autoridade para intervirem nos assuntos de alçada da
Inquisição; esta seguiria seus trâmites próprios, diversos dos habituais
nos processos comuns. Ao mesmo tempo, porém, o Papa mitigava suas
disposições: Promulgou um Breve que suspendia o confisco de bens por dez anos; outro Breve suspendia por um ano a entrega de condenados ao braço secular (ou a aplicação da pena de morte). Em outro Breve
ainda o Papa fazia recomendações tendentes a moderar os previsíveis
excessos da Inquisição e a permitir a partida dos cristãos-novos para o
estrangeiro. Pouco antes de morrer ou aos 08/01/1549, Paulo III editou
novo Breve, que abolia o segredo das testemunhas; Breve este que provavelmente nunca foi aplicado em Portugal.
Eis algumas passagens muito significativas da Introdução redigida pela Profª. Sônia Aparecida de Siqueira:
Cristãos novos
Urgia
acalmar a inquietação causada pela presença dos cristãos-novos,
inimigos em potencial pelo seu supranacionalismo. O combate às minorias
dissidentes era um programa inadiável. Os neocristãos podiam ser
portadores do fermento herético por suas crenças residuais e por seus
íntimos contatos com luteranos e judeus. E mais: Com a frutificação das
descobertas, da exploração do mundo colonial que se montava, com o
comércio ultramarino, com a urbanização progressiva, os cristãos-novos
ganhavam força econômica e tendiam a uma solidariedade que lhes acrescia
o poder de ação no meio social. O trono sentiu a ameaça que
representariam se não fossem bons cristãos. Reagiu. A Inquisição foi
criada e estendeu-se sobre cristãos-novos, cristãos-velhos, povo,
hierarquias. (pp. 502s)
Certas
determinações de Roma avocando a si, diretamente, ou por meio de seus
Núncios, jurisdição sobre os cristãos-novos revelam que existia ainda
uma certa indefinição da hierarquia judicial, bem como o propósito
pontifício de reservar para a Cúria a jurisdição superior. Em 1.533, a
Bula de Clemente VII Sempiterno Regi revogou todos os poderes
que haviam sido outorgados a Frei Diogo da Silva, Inquisidor-mor de
Portugal, chamando a si todas as causas dos cristãos-novos, mouros e
heréticos. Em 1.534, um Breve de Paulo III dirigido a D. João
III mandava que os Inquisidores suspendessem os processos contra pessoas
suspeitas de heresia. Em 1535, uma Carta Pontifícia determinava que os
Núncios de Portugal pudessem conhecer as apelações dos cristãos-novos.
No
mesmo ano, escrevia Paulo III ao rei sobre os cristãos-novos, e aos
cristãos-novos; interferindo diretamente na definição do processo,
concedia que pudessem tomar por procuradores e defensores quaisquer
pessoas que quisessem.
As
Bulas de perdão geral que paralisavam a ação do Tribunal vinham de
Roma, diluindo, de tempos em tempos, a autoridade dos Inquisidores.
Confirmando o primeiro perdão concedido por Clemente VII, concedia Paulo
III um segundo em 1.535 e, em 1547, pela Bula Illius qui misericors,
concedia um terceiro. Ao depois, outros indultos gerais foram sendo
concedidos, e, quando o próprio rei os negociava com os cristãos-novos,
tinha de pleiteá-los junto à Cúria Romana, como aconteceu com Felipe III
em 1.605.
Aliás,
as intromissões da Cúria nas atividades da Inquisição continuaram,
decrescentes sem dúvida, mas constantes pelo tempo afora, dada a
natureza de sua justiça. De 1.678 a 1.681, o Santo Ofício chegou a ser
suspenso em Portugal por decisão do Pontífice, o que indica que, apesar
da amplificação do absolutismo, os tribunais continuavam a carecer da
aquiescência de Roma para atuar. (pp. 506s)
A figura do Inquisidor
Capaz,
idôneo, de boa consciência, devia ser o Inquisidor: Requisitos que
garantiriam a aplicação da justiça com equanimidade. Pedia-se também
constância... (p. 526) O juízo coletivo sobre a Inquisição dependeria do
comportamento de seus oficiais, de sua capacidade de corrigir as
próprias imperfeições, de imolar impulsos e interesses em prol do bom
nome do Tribunal. A verdade é que, na prática, ou por causa da
vigilância social, ou do controle institucional, ou, talvez, da fusão
dos ideais individuais com os do Santo Ofício, não temos notícia de
escândalos ou abusos dos agentes inquisitoriais. Geralmente, as exceções
apenas confirmariam a regra. Alguns Inquisidores, por suas virtudes ou
pelo sacrifício, chegaram a ser elevados aos altares.
Em nota (74) diz a autora: "Não
pertenceram ao Santo Ofício português, mas foram santificados os
Inquisidores S. Raimundo Penafort, S. Toríbio Mongrovejo, S. Pedro de
Verona, mártir, S. Pio V, S. Domingos de Gusmão, S. Pedro de Arbuês, S.
João Capistrano. Beatificados foram Pedro Castronovo, legado
cisterciense, Raimundo, arcediago de Toledo, Bernardo, seu capelão.
Inquisidores também, dois clérigos, Fortanerio e Ademaro, núncios do
Santo Ofício de Tolosa, martirizados pelos albigenses, Conrado de
Marburg, mártir, pároco e Inquisidor da Alemanha, e o confessor de
Sta.Isabel da Hungria, João de Salermo. O Inquisidor da Frísia e Holanda
no século XVI, Guilherme Lindano, foi considerado Venerável." (p. 527).
A Inquisição Pombalina
"A idéia de separação de um Estado só político e de uma igreja só religiosa germina nessa época."
Pretende-se uma nova política religiosa que usa a tolerância como seu
instrumento. Impunha-se conexão com o Absolutismo, ainda então vivo como
idéia política. Limitar o poder jurisdicional da Igreja e difundir o
espírito laico.
Em
meio a esse clima das reformas pretendidas, a questão religiosa punha
em relevo o Santo Ofício, tradicional defensor da ortodoxia das crenças,
fiel zelador da unidade das consciências. Não se pensa em extingui-lo,
mas, sim, em reformá-lo, adequando-o aos novos tempos. Urgia a
elaboração de um novo Regimento que tornasse a Inquisição mais
inofensiva e pusesse o Tribunal realmente nas mãos da Coroa.
Esse
novo Regimento foi mandado executar pelo Cardeal da Cunha. No seu
Preâmbulo, justifica-se a sua necessidade na medida em que as leis que
geriam o Santo Ofício teriam sido, ao longo dos séculos, distorcidas
pelos jesuítas, interessados em dar ao Papa o supremo poder sobre a
Inquisição. Desde o governo do Cardeal Infante D. Henrique (dominado,
diz o Cardeal da Cunha, pelo seu confessor, o jesuíta Leão Henriques)
até ao Reinado de D. João V, foi o Tribunal escapando ao poder do rei.
Teria chegado ao máximo a influência da Companhia, sob o Inquisidor D.
Pedro de Castilho, que tornou a legislação mais jesuítica do que régia.
(p. 562)
Os
tempos eram diversos. O Estado se configurava de outra maneira,
definindo diferentes funções. Cioso de seu poder, recusava-se a
partilhá-lo com quaisquer instituições ou estamentos. Impunha-se a
necessidade de limitar o poder jurisdicional da Igreja. Assim o
Regimento de 1.774 visou o fortalecimento do poder da Coroa, invocando o
direito do Reino. Instalava-se o regalismo absolutista como ideal de
união cristã na ordem civil. (p. 563)
É
importante conhecer os dados históricos dos quais as páginas deste
artigo referem apenas alguns poucos traços. Contribuem para repor a
verdade em foco, mostrando as causas latentes da Inquisição em Portugal
(como também na Espanha). Os estudiosos não podem deixar de exprimir sua
gratidão ao Instituto Histórico e Geográfico do Brasil pela publicação
do trabalho da Profª. Sônia Aparecida de Siqueira e dos Regimentos da
Inquisição Portuguesa (que vigoraram também no Brasil colonial).
Escrito por Dom Estevão Bittencourt
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