O Rosário, o saltério da Santíssima Virgem, é uma oração piedosa e simples a Deus, ao alcance de todos. Consiste em louvar a Maria repetindo a saudação do anjo 150 vezes, como os salmos do rei Davi, intercalando entre cada dezena o pai-nosso e uma breve meditação ilustrativa da vida de nosso Senhor Jesus Cristo(1).
Como ponto de partida deste artigo, escolhemos a definição de rosário dada pelo Papa Pio V. Achamos que ela contém de modo admirável e sintético a essência e a configuração do rosário. A bula Consueverunt é um ponto-chave na complexa história desta devoção, e determina, nela, uma etapa fundamental.
A história do rosário não nasce com ela, mas é graças a ela que acontece uma espécie de consagração oficial e são fixadas as suas formas, substancialmente as mesmas de hoje. Os momentos históricos determinantes do desenvolvimento do rosário estão entre os séculos XII e XVI (2).
É no início do século XII que começa a se difundir a oração da Ave-Maria. A saudação angélica, sem dúvida, já era conhecida desde o princípio do cristianismo: está contida no Evangelho e até o século VII constituía a antífona sobre as oferendas do quarto domingo do Advento, domingo que tinha um significado mariano especial.
Neste texto, queremos enfatizar a novidade da repetição da ave-maria, análoga à repetição do Pai-Nosso, que já existia nesta época. Estes saltérios, o do pai-nosso e o da Ave-Maria, substituíam, nos mosteiros, a oração do saltério bíblico para os monges que não sabiam ler. Naquela época, a oração da Ave-Maria era conhecida e recitada somente na sua parte evangélica, que continha a saudação do anjo e as palavras de louvor de Isabel. O nome de Jesus e o amém final se introduziram em 1483, quando se difundiu o costume de recitar a “Santa Maria”.
Importante comentar ainda, dada a sua influência na configuração do rosário, que o saltério do pai-nosso era rezada pelos monges e pelos leigos devotos no final do dia, e era dividido em cinqüentenas como a Liturgia das Horas. São Pio V prescreveu a oração do rosário com a publicação do breviário, em 1586, e depois, passou a formar parte dele o “Santa Maria”, embora com alguma exceção.
Foi no século XIV que o cartuxo Henrique de Calkar dividiu o saltério da Ave-Maria em 15 dezenas, colocando entre uma dezena e outra a oração do pai-nosso. Foi neste mesmo período que cresceu a lenda da instituição do rosário por obra de São Domingos, difundida principalmente por Alano de la Roche, o.p. Esta lenda não pode ser aceita na sua totalidade, mesmo não se tratando, na verdade, de um erro histórico.
O saltério Mariano, como já vimos, aparece antes de São Domingos (1170- 1221), e é verdade que o santo pregador e seus frades usaram esta forma popular de oração. Basta pensar nas confrarias fundadas por São Pedro de Verona, discípulo de São Domingos, e a influência que elas tiveram na divulgação da devoção à Virgem Maria.
A simples repetição da Ave-Maria e do Pai-Nosso ainda não continha a contemplação dos mistérios. O primeiro documento que testemunha a tentativa de conjugar as Ave-Marias com a meditação dos mistérios evangélicos remonta ao século XV. Entre 1410 e 1439, Domingos da Prússia, cartuxo de Colônia, propôs aos fiéis uma forma de saltério mariano, na qual o número de Ave-Marias se reduzia a 50, e a cada uma se acrescentava uma referência verbal e explícita a um acontecimento evangélico, como se fosse um refrão. Destas citações propostas por Domingos da Prússia, 14 faziam referência à vida oculta, pré-apostólica de Cristo, 6 à sua vida pública e 24 à sua paixão e morte; as outras 6 à glorificação de Cristo e de Maria, sua mãe. Foi graças a Domingos da Prússia que se iniciou a nova forma de saltério mariano, e foi ela que deu origem ao rosário como o conhecemos hoje.
O exemplo do cartuxo de Colônia foi seguido por muitos continuadores e teve grande ressonância. O século XV foi testemunha da proliferação de muitos saltérios deste gênero. As citações evangélicas aumentaram imensamente, chegando-se a falar em 300, variando de área para área, e segundo a devoção de cada lugar.
Alano de la Roche (1428- 1478), de quem já falamos, foi contemporâneo de Domingos da Prússia. Este dominicano difundiu de maneira extraordinária o saltério mariano - que começou chamado de “rosário da bem-aventurada Virgem Maria” - através da pregação e, principalmente, das confrarias marianas que ele mesmo fundou. Ele dividia a devoção em dois momentos, o rosário novo e o rosário antigo; neste, simples-mente se repetem as Ave-Marias, enquanto o novo é aquele que incorpora a meditação dos mistérios, propostos ordenadamente em três grupos: encarnação, paixão e morte de Cristo, e glória de Cristo e de Maria.
Quando se difundiu pelo povo, o Rosário se simplificou e, em 1521, Alberto de Castello reduziu o número de mistérios, escolhendo 15, e os propôs aos devotos do Saltério Mariano. As citações evangélicas foram substituídas por simples enunciados dos mistérios, que serviam de lembrança para aqueles fatos ao longo da recitação das Ave-Marias.
As formas propostas por Alano de la Roche e Alberto de Castello foram se impondo sobre as demais. E as novas confrarias marianas difundiam por toda a Europa esta devoção “reformada”.
Os primeiros documentos pontifícios sobre o rosário falavam dos privilégios e das indulgências concedidas a estas confrarias. Em 1569, São Pio V, com a bula Consueverunt Romani Pontífices, consagrou uma forma específica para o rosário, substancialmente a mesma que se usa hoje.
Naquele período, porém, o rosário não era um privilégio destas confrarias. Sua tradição já tinha se enraizado profundamente no povo e se tornado uma forma universal de oração. Piedade mariana e rosário se confundiram: a primeira encontrou na segunda a sua expressão orante, mais simples e mais rica. Das menores paróquias até as grandes catedrais, dos países da Europa até as terras de missão, o rosário atingiu todos os confins do cristianismo. Sua época de ouro durou até colocarem em discussão o sentimento religioso e, sobretudo, a devoção à Virgem Maria, o que resultou, em muitos casos, num esfriamento e abandono do rosário.
O Rosário não é uma oração de iniciação cristã, mas um ponto de chegada depois de um longo caminho de fé. Minha avó não sabia ler nem escrever, mas sabia falar do rosário melhor do que eu. Seu amor a Maria era tão forte que ela conseguia reunir a maior parte dos vizinhos do nosso prédio para rezar todos os dias o terço, que só é apreciado devidamente quando vivido. Para conhecer a história encarnada desta devoção, é preciso entrar, na ponta dos pés, em tantas casas, hospitais, barracos, onde, desde a Idade Média, ressoa a Ave-Maria como naquela primeira vez, em Nazaré, quando o anjo saudou a Rainha do Céu dizendo: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo”, ou em Ain Karim, quando, na casa de Zacarias, Isabel disse: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre”. Casas, barracos, hospitais, paróquias, campos, onde a coroa do rosário unia ao céu os pobres, os humildes, os doentes, os apaixonados pela fé trazida por Cristo.
O Rosário pode ser redes-coberto se os cristãos de hoje, especialmente os sacerdotes, religiosos, bispos - e não somente o Papa -, se fizerem pequenos e, com humildade, começarem a dedicar um pouco do seu tempo à oração. No nosso tempo, cheio de correrias, é difícil rezar. Além disso, muitos educadores têm medo do devocionismo, dentro do qual rotulam também esta magnífica tradição. Dizia meu mestre, o padre Henrique Rossetti, o.p.: “Um cristão sem devoções não foi prestigiado até hoje por nenhum santo, nem sequer pelo ensino autorizado da Igreja. Onde quer que se tenha procurado implantar este cristianismo dessacralizado, impopular, desumano, sem coração, o único fruto que se conseguiu produzir foram desastres na fé. Pude ver isso em algumas áreas do Brasil, onde o povo, privado das verdadeiras devoções, se inclinou para a magia”.
A objeção é sempre a mesma: “Não seria melhor trabalhar durante meia hora por um pobre, do que dizer um montão de Ave-Marias? ”. Esta é a atual realidade psicológica da nossa sociedade. Quando falamos da oração em geral, particularmente do rosário, temos que renovar-nos, começando por nós mesmos, os sacerdotes, e ter idéias claras sobre o seu valor intrínseco. Nenhum cirurgião se torna famoso pelo fato de dar conferências em prestigiosas universidades. Pelo contrário, ele adquire prestígio e fama quando vemos curados os doentes que ele atendeu. Não existirá oração se primeiro não existir a fé, e a fé só cresce num terreno adequado.
Jesus disse aos discípulos: “Orai sem cessar”. Sem oração, o cristianismo se reduz a pura exterioridade; a ação se transforma em fim; a caridade evangélica acaba sendo simples filantropia. Por isto, para nós, cristãos, é importante rezar, e rezar o Rosário.
O Rosário é um caminho fácil para redescobrir a oração, que alimenta a fé. Ele nos oferece a possibilidade de contemplar sinteticamente toda a história da salvação, e reflete, assim, a primitiva pregação da fé. É contemplação essencial, com Maria, no mistério de Cristo. É um “credo transformado em oração”, que, introduzindo-se na nossa vida cotidiana, leva a nossa vida a se conformar com o chamado de Deus ao amor, e dá, assim, um sentido de eternidade àquilo que fazemos. É uma oração positiva, porque caminha junto com a nossa vida diária.
Com o Rosário, vamos dar a mão com confiança a Maria, e pedir a ela que nos leve a Cristo. É a ela, a primeira entre os fiéis, a quem devemos pedir que nos ajude a viver o que ela viveu, ou seja, a realidade da presença de Cristo no meio de nós.
Pe. Ennio Domenico Staida , O.P.
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