Os problemas surgidos pelo impacto do cristianismo com o direito
romano são muitos e complexos, e receberam respostas muito diferentes,
tendentes umas a aumentar a influência das doutrinas cristãs sobre o
direito romano no Baixo Império (I), as outras a reduzi-la a proporções
mais justas. Com efeito, tratou-se de avaliar a influência do direito
romano sobre a evolução do cristianismo em geral, e sobre as
instituições eclesiásticas em particular (II).
I. Doutrinas cristãs e direito romano. A influência
cristã sobre o direito romano derivou sobretudo da vontade do príncipe; a
expressão mais direta foi sem dúvida a legislação imperial:
a) os
imperadores aceitaram e impuseram a nova religião; multiplicaram as
instituições que favoreciam a Igreja; asseguraram o triunfo da fé
cristã, tal como definida pelas autoridades da própria Igreja,
ameaçando, em caso contrário, com as mais diversas sanções (exclusão das
funções civis, incapacidade para suceder, etc.). Abundante legislação
reprimiu as heresias, o paganismo e a religião judaica (CT XVI). Os
imperadores se preocuparam também com regulamentar o estatuto dos
clérigos e dos bispos, bem como as condições necessárias para aceder às
ordens; em favor do clero prodigalizaram formalmente o primado romano (Novella
18, de 19 de junho de 448);
b) deve-se notar ainda uma influência
cristã na legislação sobre a família e sobre a sociedade. A Igreja lutou
contra o aborto, o abandono dos recém nascidos, o comércio das
crianças, os abusos da patria potestas [pátrio poder], e teria
desejado também uma restrição oficial à liberdade do divórcio (Concílio
de Cartago de 13 de junho de 407). Provocou sanções para quem rompia sem
justo motivo o noivado (CT 3,5,2. Cf. Concílio de Elvira, cânon 54) e
obteve a interdição dos matrimônios entre os parentes (CT 3,12,2-4; cf.
Concílio de Elvira, cânon 61). Suportou a escravidão, mas esforçou-se
para abolir o costume de marcar na testa os escravos, e de manter
separadas as famílias dos servos; favoreceu a alforria e obteve o
reconhecimento civil dos que eram alforriados in ecclesia.
Lutou contra os jogos dos gladiadores e conseguiu obter a sua supressão.
Chegou até mesmo a fazer modificar o calendário civil em função de suas
festividades, e a substituir o domingo ao die solis; procurou
manter intacto o cunho sagrado dos dias reservados a Deus, fazendo
proibir nestes os jogos do teatro e do circo;
c) menos incisiva foi a
influência das doutrinas cristãs no campo econômico. Houve quem quisesse
ver esta influência na legislação sobre lesões ou limitações das taxas
de juros; na ampliação da noção de dolo; no enfraquecimento do
formalismo em favor do cunho obrigatório do simples compromisso; nas
sanções contra o enriquecimento injusto; mas é difícil avaliá-la em
todos estes casos, sem ter, no entanto, de rejeitá-la totalmente;
d) a
legislação sobre os crimes, no Baixo Império, foi assinalada por mais
forte severidade, quase por uma crueldade. Sobre esta o cristianismo
influiu bem pouco, e apenas esporadicamente e de maneira inteiramente
casual. A Igreja obteve a supressão do suplício da cruz, e a
possibilidade de participar da vigilância das prisões, a fim de poder
confortar os prisioneiros;
e) os historiadores conseguiram descobrir
também outros traços da influência cristã sobre a técnica jurídica
romana, mas as coincidências evidentes são muito insignificantes
(Gaudemet, 512).
A
influência do direito romano sobre a sociedade eclesiástica se verificou
principalmente na terminologia, na técnica jurídica, nas instituições:
praticamente na transposição ou adaptação das regras romanas às
necessidades próprias da igreja;
a) Entre as permutas terminológicas, a
de ordo, para designar os membros da hierarquia eclesiástica, é
uma das mais significativas, já que este termo, desde o princípio,
qualificava os quadros dirigentes da civitas e, propriamente, o
senado municipal. Faz-se mister recordar também que os poderes do sumo
pontífice, desde o princípio, foram definidos com os termos técnicos de auctoritas e de potestas.
Quanto à terminologia das decretais, foi ela fortemente devedora
daquela das constituições imperiais;
b) Particularmente sentida foi a
influência do direito romano na área da técnica jurídica. O poder
legislativo do papa não foi certamente simples mudança das instituições
romanas (permaneceu fundado na Escritura e provinha do primado); mas nem
por isto foi menos devedor daquele a respeito da elaboração das
decretais, na linha dos modelos do tempo. Doutro lado, os modos de se
recorrer ao papa inspiraram-se claramente no direito imperial (relatio, provocatio).
O mesmo se verificou quanto aos concílios. Esta instituição não foi
simplesmente tomada do direito público romano, mas beneficiou-se muito
com os modelos do tempo acerca de sua organização (modo de dirigir as
sessões, processo nas votações, redação dos atos, etc.). Mas o direito
canônico serviu-se mais amplamente dos modelos romanos no âmbito
processual: retomou a técnica das praescriptiones (de persona, de mandato, de tempore) e da contestatio litis;
adotou também as particularidades concernentes aos meios de prova e as
condições relativas às testemunhas (como a da exclusão das infames personae).
Nem é preciso explicar que o direito canônico deve ao direito romano
todo o contexto do processo de apelo;
c) A influência do direito romano
sobre as instituições cristãs foi multiforme; claríssimo em matéria de
matrimônio. A Igreja retomou, no essencial, a noção romana do matrimonium, e as condições para realizá-lo (dos, tabulae nuptiales);
adotou sua doutrina sobre o matrimônio consensual, aliás logo
aperfeiçoado (Munier, 17); conservou os noivados segundo as leis
romanas, mas pouco depois os distinguiu nitidamente do matrimônio
propriamente dito. Foi intransigente em seus princípios em matéria de
fidelidade e de indissolubilidade. Muitas das normas relativas ao
estatuto dos clérigos se inspiraram nas que regulavam as carreiras civis
(proibição de passar de um posto a outro, promoção por graus,
interstícios).
E, enfim, os sinais exteriores do poder (vestes e
insígnias) dos funcionários romanos foram adotados para significar os
vários graus dos dignitários eclesiásticos (pontificalia, dalmática, pálio). Por último, mencionamos o paralelismo bem claro entre as circunscrições administrativas e as eclesiásticas.
Autor: HELIO.
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"Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs", Ed. Vozes e Ed. Paulinas, 2002, pp. 417-8.
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