"O fantasma que protagoniza as ideias de fundo é a agenda da embaixada dos EUA, mais especificamente o acionar oficioso das trocas de regime, e, no caso latino-americano, na esteira da reação aos governos de centro-esquerda, afirma o cientista político Bruno Lima Rocha."
Por João Vitor Santos e Patrícia Fachin
Em meio à crise que vem se arrastando, “se há alguma novidade” no cenário político brasileiro, “é a chegada de uma espécie de um Tea Party nacional, como expressão dos ultraliberais, através do Partido Novo e também do Partido Social Liberal (PSL, este bem pequeno)”, diz Bruno Lima Rocha à IHU On-Line, fazendo referência ao movimento norte-americano.
Segundo ele, a nova direita segue “ideias de tipo neoliberal,
ultraliberal, neoconservadoras, passando como uma linha direta dos think
tanks, dos centros de difusão, das fundações de apoio ao Tea Party”, e é
“sucessora direta dos grupos neoliberais do Brasil, como o Estudantes
pela Liberdade, o Instituto Mises Brasil, a juventude neoliberal
vinculada ao Fórum da Liberdade e outras iniciativas difusoras do
pensamento econômico neoclássico e da política neoliberal”.
Na
entrevista a seguir, concedida por e-mail, Rocha adverte que o que
“está em disputa” na crise “é o conceito de democracia”, não no mesmo
sentido em que esteve nos anos 30, com “elogio ao autoritarismo”, porque
“a esquerda de tradição mais autoritária não se afirma como defensora
de ditadura de espécie alguma, embora sempre elogie governos mais duros
desde que este projete a melhoria nas condições materiais de vida”.
A
ameaça à democracia, explica, é “de tipo liberal” e “está justamente na
desconfiança na quebra das regras do jogo, com o apelo de impeachment
através de um tema discutível e que entendo como não caracterizado como
crime de responsabilidade, sendo mais um argumento de tipo ideológico e
de defesa de um arranjo na política econômica”.
Bruno Lima Rocha tem doutorado e mestrado em Ciência Política pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e graduação em
Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atua como
docente de Ciência Política e Relações Internacionais e também como
analista de conjuntura nacional e internacional. É editor do portal
Estratégia & Análise, onde concentra o conjunto de sua produção
midiática, analítica e acadêmica.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como interpretar o que vem ocorrendo hoje no Brasil?
Bruno Lima Rocha - Esta pergunta pode condensar todas as respostas
consecutivas. Mas, tentando resumir, vejo que estamos diante de uma
crise do pacto de classes representado pelo lulismo; uma crise econômica
onde a capacidade de governo perde para o apetite voraz do mercado
financeiro e o espólio da dívida pública brasileira; uma crise na
ex-esquerda, pois o PT se vê apenas com um aliado estratégico (o PC do
B), e não consegue recrutar a maioria despolitizada que fora atingida
pelos programas sociais e acertadas políticas redistributivas; uma crise
na direita política brasileira diante da pressão alucinada de
ultraliberais e neoconservadores alimentados pelos fundos dos EUA; e por
fim, uma crise no modelo de acumulação capitalista brasileiro, onde o
novo entrante, o PT, no reparto do botim do orçamento da União, viu-se
em posição inferior diante dos oligarcas anteriores e os cartéis das
empreiteiras (mas poderíamos abordar qualquer outra área-chave da
economia brasileira) e terminou sendo alvo de sua própria derrota
ideológica ao mimetizar com a direita empresarial perspectivas de país e
com a direita política modelos de se locupletar a partir do aparelho de
Estado.
IHU On-Line - O que está em jogo nesse cenário político
brasileiro para além do impeachment ou da permanência da presidente
Dilma?
Bruno Lima Rocha - As direitas brasileiras, dentro e fora do governo,
estão diante do impasse de atender as demandas sociais ou ajustar-se na
crise que vem de fora e de dentro e cortar o tamanho da intervenção do
Estado como garantidor dos direitos sociais adquiridos. Lula tem uma
agenda, Agenda Brasil, Temer tem a sua, a Fiesp e o empresariado tem a
sua, os grupos de mídia semiarticulados no Instituto Millenium têm a sua
e todas convergem para o avanço no retrocesso de direitos adquiridos,
como no PL 4330, PLS 131, PEC 215, Nova Lei das Estatais (com abertura
de capital em 20% para empresas que movimentem mais de R$ 90 milhões
ano), na “reforma” da Previdência, na abertura de mercados estratégicos
para empresas transnacionais, e a lista segue e é enorme.
Esta agenda é mais negociada com Dilma sobrevivendo e talvez Lula à
frente da composição ministerial, mas estrategicamente esta agenda é o
botim da vitória sobre uma ex-esquerda que já não é mais necessária e
para as direitas brasileiras que definitivamente não querem ver um
Brasil como potência média no Sistema Internacional no marco do
capitalismo do século XXI. Para os movimentos populares e para a
esquerda restante — fora do pacto lulista — os dias, meses e anos que
seguem são sombrios e de muita, muita luta e capacidade de reinvenção
permanente.
IHU On-Line – Quem são os principais personagens e quais os seus papéis no jogo político nacional?
Bruno Lima Rocha - Como acredito que citei-os acima, e abaixo tem uma
pergunta sobre a Nova Direita, vou avançar no tema de setores da
tecnocracia de Estado, como o Judiciário e os procuradores federais (mas
também magistrados e procuradores estaduais), assim como setores
importantes de delegados federais que parecem agir com um modus próprio e
ultrapassando as raias da responsabilidade funcional como no caso do
grampo da conversa da presidente com Lula.
Como indivíduos, vemos o juiz Sérgio Moro, o ex-presidente Lula, a
atual presidente Dilma e o mal afamado presidente da Câmara, o deputado
federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Como protagonistas pró-impeachment por
fora da intermediação indireta, notadamente a Fiesp puxa a ala
empresarial, assim como a Globo puxa a pauta e a gravitação dos grupos
de mídia.
Note-se a ausência de um protagonismo por direita política, visto que
os neoconservadores e ultraliberais não atendem a estes intermediários,
embora os veja como uma espécie de “mal necessário”. O fantasma que
protagoniza as ideias de fundo é a agenda da embaixada dos EUA, mais
especificamente o acionar oficioso das trocas de regime, e, no caso
latino-americano, na esteira da reação aos governos de centro-esquerda
(no nosso caso, centro ex-esquerda) a exemplo do golpe paraguaio, quando
o presidente Fernando Logo foi derrubado quase sem resistência por
parte do Poder Executivo do país guarani.
“Todas as agendas convergem para o avanço no retrocesso de direitos adquiridos”
IHU On-Line – Como compreender o papel que vêm exercendo os
movimentos sociais, os sindicatos e as entidades de classes (como tal me
refiro a associações como Fiesp, OAB etc.)?
Bruno Lima Rocha - Vamos separar os conceitos. O movimento popular
brasileiro tem no MST e movimentos associados a sua hegemonia. Nesta se
encontra a Frente Brasil Popular, uma frente político-social que espelha
a base do PT e do PC do B. Um pouco mais à esquerda, mas ainda dentro
deste guarda-chuva, está à frente Povo sem Medo, liderada pelo MTST de
São Paulo e com alguma envergadura nacional. Esta também se encontra no
guarda-chuva do governo ainda que com críticas. Já as federações
empresariais não são “sociedade civil” no sentido mais estrito, pois
estas representam o agente econômico e seus interesses diretos. Neste
caso, é visível que a posição da Fiesp, CNI, Fecomércio de vários
estados e entidades afins é rasgar a CLT e realizar a retirada de
direitos garantidos tanto na Constituição como em legislação anterior.
Uma das razões da queda de Vargas em 1954 foi, além da Petrobras, o
aumento de 100% do salário mínimo, assim como a formalização da Justiça
do Trabalho. Rasgar esta estrutura de defesa e amparo do trabalhador é
fundamental hoje para manter o nível de acumulação e também enfraquecer o
poder da mão de obra no Brasil.
Já a posição da OAB é algo controverso e entendo que prejudica a
legitimidade da instituição. Não sou nenhum pouco simpático aos colégios
de profissionais, tradição esta que vem da Idade Média e é anterior aos
sindicatos. A OAB, que junto da CNBB e ABI esteve à frente do processo
negociado de abertura política, rasga esta tradição recente e se
reposiciona como em 1964, quando esteve a favor do golpe.
IHU On-Line – Que nexos é possível estabelecer entre a
Operação Lava Jato e a Operação Mãos Limpas? A quem interessa uma
operação Mãos Limpas à brasileira?
Bruno Lima Rocha - A Operação Mãos Limpas foi um ato interessante de
tentar quebrar as relações umbilicais entre o sistema político italiano
de pós-guerra e o jogo empresarial, além da presença da máfia no sul da
península. Já a Lava Jato foi a possibilidade de concretizar a relação
promíscua entre o oligopólio da construção pesada e empreiteiras no
Brasil (criado com reserva de mercado estabelecida em 1967 pela
ditadura) e os diretores da Petrobras.
Por um lado, é interessante e causa simpatia na população ver os
cartéis sendo punidos; por outro, trata-se de evidente punição seletiva e
andando junto da difusão midiática. O limite desta tensão foi a difusão
das gravações da presidente Dilma Rousseff conversando com o
ex-presidente Lula, este sim alvo de investigação, mas ainda não réu. A
Lava Jato assim materializa a ousadia midiática de um juiz de primeira
instância que galvaniza o salvacionismo do Brasil, antes em 2013 e 2012,
capitaneado por Joaquim Barbosa. Ambos os sistemas políticos, o
italiano e o brasileiro, são endemicamente corruptos e hegemonicamente
fisiológicos. Logo, a destruição da legitimidade do sistema político sem
a substituição desta ideia de representação profissional pela
democracia direta abre ainda mais lugar para a espetacularização da
política (como com Silvio Berlusconi e agora Donald Trump) e discursos
que criam o mito do corruptor que nada podia fazer diante do poder dos
corruptos.
IHU On-Line – O que a Lava Jato põe em xeque em termos constitucionais?
Bruno Lima Rocha - Em termos constitucionais a Lava Jato coloca em
xeque a capacidade do Poder Executivo de controlar apropriadamente o
aparelho de Estado, em especial a Polícia Federal na operação de grampo
da presidente assim como de ministros de Estado. Também gera a profunda —
e entendo que correta — desconfiança no processo político, considerando
que a Constituição entende um eleitor/a, um voto; e o poder dos
conglomerados empresariais, diante da lista da Odebrecht, por exemplo,
demonstra como os grandes agentes econômicos têm um poder que supera, e
muito, qualquer representação coletiva como luta sindical ou movimentos
reivindicativos, além de explicitar a relevância do aparelho de Estado
como fator de acumulação de poder e capital no Brasil.
Logo, ao colocar contra a parede o papel do Estado, por tabela, a
Lava Jato afirma o Estado punitivo, o Estado meio gendarme, e ajuda a
retirar a frágil legitimidade do Estado brasileiro, algo que favorece a
agenda da embaixada dos EUA, mesmo que de forma indireta.
IHU On-Line – Em que medida a Lava Jato pode ser interpretada como judicialização da política? Quais os riscos?
Bruno Lima Rocha - Eu perguntaria risco de quê? O Judiciário opera
como poder moderador hoje na República, uma vez que a política
representativa não o faz ao fiscalizar o Executivo e, ao mesmo tempo,
sobrecarrega o STF como guardião da Constituição. O ativismo judiciário é
presente e dá o sentido de “fazer Justiça” através do Poder Judiciário,
quando na vida concreta a lei é diferente do direito e, por vezes,
ambos muito distantes da Justiça. A Lava Jato é o clímax da aliança
empresa midiática e a capacidade investigativa do Estado em nível
federal e traz a evidência de que o senso comum recebe as mensagens dos
emissores com pouco ou nenhum senso crítico.
“O Brasil tem mais legendas eleitorais do que ideologias existentes no planeta”
IHU On-Line – Como analisa as últimas manifestações pró e contra impeachment? Qual vem sendo o papel das ruas nesse processo?
Bruno Lima Rocha - As ruas atuam como arena de massificação, fazendo
do espetáculo da política midiatizada um fator de legitimar ou não as
medidas de governo ou tomadas de decisão. A direita ter coragem e
mostrar-se como direita na rua foi uma novidade na Nova República, sendo
algo só visto nos momentos pré-1964 e nos meses anteriores ao AI-5. A
presença de gente organizada nas ruas contra o golpe paraguaio traz a
visibilidade de que não vai ser tão fácil, ainda que seja muito difícil
separar a luta contra o golpe branco da defesa de um governo que entendo
como, do ponto de vista militante e de esquerda, algo indefensável.
IHU On-Line – Que leitura é possível fazer das posições da
grande mídia nacional? O que se apresenta como alternativo aos grandes
veículos de comunicação do Brasil?
Bruno Lima Rocha - A grande mídia nacional atua contra seus
interesses de longo prazo ao fortalecer a posição de uma direita mais
oligárquica e também ideologicamente ligada ao capital transnacional. A
mídia brasileira é um dos setores da economia capitalista brasileira que
têm muita expertise, como é o fato da Globo como central de produção
audiovisual em escala planetária. Para os interesses imediatos,
manipular a opinião pública através da opinião publicada é central para
reforçar o poder relativo dos grandes grupos de mídia, que embora sejam
conglomerados econômicos, são grandes produtores de sentido e ideologia
difusa pró-capitalista.
Em momentos de tensão como este, há uma difusão ideológica direta,
tanto na exibição seletiva dos desvios de grupos de poder e elites
dirigentes, como em manobras bastante grosseiras, como suspender
programação da grade de domingo para exibir o ato central
pró-impeachment na Avenida Paulista. O mesmo se dá no jornalismo, onde o
contraditório só ocorre quando alguma das fontes se indigna com os
enunciados e exige direito de resposta.
Internet: a alternativa midiática ou alinhamento ao lulismo?
A alternativa aos grandes veículos de comunicação está na internet,
na outrora chamada blogosfera, mas que também se caracteriza por um
grande alinhamento ao lulismo (linha crítica deste) e através de
distribuição de verbas federais. Como o Estado em seus três níveis de
governo é o maior anunciante do país e como também a esquerda brasileira
só associa democracia política com a social-democracia decadente,
terminamos por não defender um modelo de jornalismo como sinônimo de
democracia de tipo direta ou semidireta. Assim como não é vista como
estratégica para montar uma musculatura política a favor das maiorias, a
comunicação social não foi tocada pelo lulismo, mesmo quando tinha
maioria no Congresso ou popularidade de mais de 80%!
Ao contrário, no momento de maior acumulação de forças, o lulismo
optou pelo suposto jogo do ganha-ganha, também na comunicação. As
empresas de mídia, oscilando entre críticas severas ou tréguas pontuais,
representam o bastião do anti-latino-americanismo, voltando-se ao mundo
ocidental como referência, uma espécie de manutenção do criollismo do
período da independência. A mídia brasileira não é a única no Continente
a agir assim, sendo, sim, o padrão operacional como porta-voz
ideológico das posições mais à direita em toda América Latina.
IHU On-Line – O que, em todo esse processo político, tem
levado à polarização que radicaliza o debate e revela as faces da
intolerância nos mais variados espaços da sociedade? Como interpretar um
momento em que o posicionamento político leva o debate até os limites
físicos e morais da civilidade?
Bruno Lima Rocha - Primeiro eu entendo que a civilidade não é debater
sem confrontar e sim ter a mesma indignação diante de um país com mais
de 58 mil mortes violentas por ano e ainda uma sociedade das mais
injustas no planeta. O acirramento dos ânimos políticos se dá em função
da polarização da política porque temos projetos antagônicos, embora nem
a oposição queira nada além de alinhar o país ao capital transnacional e
a manutenção de privilégios ainda herança do período da colônia e o
fato de que o governo de centro-esquerda hoje é de centro-direita e tem
uma política keynesiana tímida e tardia sem romper com o capital
financeiro.
Mas, a direita ideológica brasileira é tão pró-EUA que mesmo as
políticas sociais e compensatórias — tímidas e por vezes inexistentes no
mundo real —, ao implicarem em reconhecimento de setores
marginalizados, trazem os brios do conservadorismo nacional. Aqui no
Brasil, ninguém é de direita, até esta direita como silenciosa ver-se
diante da possibilidade de que o reconhecimento das necessidades da
maioria torne-se um imperativo.
Aí temos um conflito. Se a maioria não se organiza — como é o caso
brasileiro — ou então é alvo de políticas sociais minimamente
redistributivas, então as teses do ultraliberalismo conservador aparecem
como “defesa da liberdade”. Vejo que o avanço do impeachment vai levar a
uma radicalização ainda mais forte das posições políticas na sociedade
brasileira, podendo inclusive superar a falsa identificação do lulismo —
que é um pacto de classes de caráter conservador, mas distributivo —
com a luta popular e podendo chegar a níveis mais intensos do conflito
de ideias associadas à manutenção ou à perda de direitos coletivos.
IHU On-Line – Em que medida a crise política nacional expõe que o atual sistema de representatividade chegou a seu limite?
Bruno Lima Rocha - O Brasil tem mais legendas eleitorais do que
ideologias existentes no planeta. Se há alguma novidade é a chegada de
uma espécie de um Tea Party nacional, como expressão dos ultraliberais,
através do Partido Novo e também do Partido Social Liberal (PSL, este
bem pequeno). Por esquerda e com representação no parlamento, hoje tem
apenas o PSOL, já que as demais legendas eleitorais não têm peso para
conseguir votações expressivas. A centro-esquerda ficou reduzida ao PT e
ao PC do B e aí temos uma série de legendas de aluguel ou sem definição
própria. Hoje o sistema político tem três grandes partidos, PT, PMDB e
PSDB, sendo que o PMDB é essencialmente uma coligação de oligarquias
estaduais e sempre é governo.
Parece óbvio que o limite da representação e a crise da
representatividade não é algo exclusivo do Brasil, mas sim a ausência de
formas de deliberação coletiva, como seria viável através de mecanismos
de tipo democracia direta. A esta acumulação de forças chegamos em
2013, mas não houve força da esquerda para aprovar a reforma política
com elementos de democracia direta — conforme previsto no anteprojeto
original — e ainda em junho de 2013, a ação da mídia e a penetração da
direita nos atos de São Paulo e do Rio levaram a um sequestro da pauta
manobrando para desviar a atenção nos protestos por direitos coletivos,
no caso, do direito à mobilidade urbana. Assim, sim, vejo que o estatuto
da democracia indireta está em crise profunda e é necessário avançar
nos direitos coletivos através de elementos de democracia direta, mas
seria pensamento mágico afirmar que isto pode ocorrer no curto prazo
através da composição do Congresso.
“A tentativa é sempre uniformizar a esquerda para servir como moeda de negociação com a direita que não está no governo”
IHU On-Line – Vive-se um momento de enfraquecimento da esquerda? Por quê?
Bruno Lima Rocha - Entendo que o lulismo como fenômeno proporcionou
uma grande melhoria das condições de vida, mas, ao mesmo tempo, estamos
em um período de fragilidade organizativa e um discurso cada vez mais
“lavado” por parte tanto do partido de governo (PT) como de seu aliado
estratégico (PC do B). Ao formalizar o pacto de classes, imediatamente
enfraquece o conceito de luta de classes, luta popular ou qualquer
conflito que não possa ser aparentemente processado por dentro do
governo, repetindo a falácia do “governo em disputa”.
Ideologicamente a política de reconhecimento — justa e correta, mas
pouca e mais simbólica do que efetiva — atiçou o conservadorismo
brasileiro, popularizando as ideias mais à direita e de tipo
conservadoras. Estas se somaram com a ofensiva do ultraliberalismo,
sendo que a internet atinge a pessoas isoladas politicamente,
vinculando-as a ideias na forma de signos publicitários, de tipo
comunicação efêmera nas redes digitais. Ou seja, ideias conservadoras,
mais à direita, sendo difundidas pela rede e massificando as direitas
brasileiras.
Automaticamente, estas posições enfraquecem a esquerda. Não há como
afirmar, de nenhuma forma, que há apelo popular no conservadorismo
brasileiro, basta observar o perfil dos manifestantes pró-impeachment,
mesmo quando nos atos massivos como os da Avenida Paulista. Por outro
lado, estamos diante de uma enorme lacuna de organização de base,
estando os 44 milhões de brasileiras e brasileiros ideologicamente
flutuando. Estes que saíram da extrema pobreza ou tiveram alguma
mobilidade social através de muito esforço e algumas políticas corretas
vindas do governo federal são o alvo de disputa ideológica e representam
o enfraquecimento da esquerda, justo por não poder organizá-los. Quando
há queda da hegemonia de um setor da “esquerda”, denominando
apropriadamente de ex-esquerda, é da ordem da política um período
bastante largo até esta se organizar novamente e criar uma nova
hegemonia com perfil mais combativo.
IHU On-Line – Quem é e como compreender a chamada “nova
direita”? Em que medida as críticas vindas da própria esquerda ao modelo
do governo de Dilma Rousseff de ser esquerda insuflam essa nova
direita?
Bruno Lima Rocha - A nova direita, entendo-a como a massificação de
ideias de tipo neoliberal, ultraliberal, neoconservadoras, passando como
uma linha direta dos think tanks, dos centros de difusão, das fundações
de apoio ao Tea Party e grupos afins, passando por “movimentos” que se
organizam como agências de publicidade mobilizando redes cibernéticas, a
começar pelo maior de todos, o chamado MBL. Esta nova direita é
sucessora direta dos grupos neoliberais do Brasil, como o Estudantes
pela Liberdade, o Instituto Mises Brasil, a juventude neoliberal
vinculada ao Fórum da Liberdade e outras iniciativas difusoras do
pensamento econômico neoclássico e da política neoliberal.
Outra ala da “nova direita” está no neoconservadorismo nacional,
passando pelos neopentecostais e algumas linhas de encontro, como a base
política do PSC, com os pastores Marco Feliciano e Everaldo à frente e
com base emprestada pela família Bolsonaro. Impressiona ver como temas
de fundo da nova direita dialogam com perfeição com o léxico da política
dos EUA, com o dicionário da política estadunidense incluindo seus
termos e suas bandeiras, como a estúpida campanha contra a ação
afirmativa e as fracas e mais simbólicas do que efetivas políticas de
reconhecimento e compensatórias.
Já as críticas ao governo Dilma por esquerda, sinceramente não vejo
como uma pode fortalecer a outra. Vejo este argumento como o
oficialismo, como a versão atual de uma tradição pelega e stalinista,
onde a tentativa é sempre uniformizar a esquerda para servir como moeda
de negociação com a direita que não está no governo. O pacto de classes
necessita a uniformidade e coesão da esquerda através da centro-esquerda
para garantir a negociação com os oligarcas e parcelas do capital
nacional que ainda não aderiram à terra arrasada com o fim da CLT e
outros severos ataques contra os direitos coletivos.
IHU On-Line – Como fazer a crítica ao atual sistema de
governo e de representatividade sem ameaçar a democracia, inclusive
radicalizando o conceito de representatividade democrática?
Bruno Lima Rocha - Acredito que o que está em disputa é o conceito de
democracia; não há, como nos anos 30, algum elogio ao autoritarismo de
nenhuma ordem e mesmo a esquerda de tradição mais autoritária não se
afirma como defensora de ditadura de espécie alguma, embora sempre
elogie governos mais duros desde que este projete a melhoria nas
condições materiais de vida. A ameaça à democracia de tipo liberal e
indireta está justamente na desconfiança na quebra das regras do jogo,
com o apelo de impeachment através de um tema discutível e que entendo
como não caracterizado como crime de responsabilidade, sendo mais um
argumento de tipo ideológico e de defesa de um arranjo na política
econômica e não como um crime tal como uma fraude ou algo semelhante.
Já o tema da democracia direta implica uma disputa na interna da
esquerda restante e dos movimentos populares ainda no guarda-chuva do
governismo e uma projeção de outro modelo de acumulação de forças
sociais para algum tipo de câmbio profundo. Mas, tenho certeza de que se
o movimento social não tem democracia interna, não consegue defender
esta bandeira da democracia participativa e direta em escala nacional.
Portanto, é uma luta de longo prazo e constituição de um paradigma de
conflito social reivindicativo e voltado para construir entidades de
base e movimentos massivos com plena participação interna e defesa de
ampliação de direitos coletivos.
“Tenho certeza de que se o movimento social não tem democracia
interna, não consegue defender esta bandeira da democracia participativa
e direta em escala nacional”
IHU On-Line – Qual a saída para o estado de crise nacional?
Bruno Lima Rocha - A crise que se abriu com o fim do modelo de
crescimento a partir do pacto de classes não tem saída fácil nos marcos
do capitalismo liberal-periférico onde vivemos e menos ainda uma saída
popular para romper com a maldita herança pós-colonial e de dependência.
A crise política que se implanta no final do ciclo lulista vai durar
bastante, assim como a crise de hegemonia dentro da esquerda. Considero
ambas as crises também positivas, pois abrem margens para novas
acumulações, embora a tentativa de impeachment na forma de golpe
institucional obedece à agenda da embaixada dos EUA. Há uma dimensão de
ruptura do pacto político iniciado na Abertura e entendo que vamos ficar
um bom tempo com essa polarização política. Espero que tal polarização
implique na defesa da manutenção e ampliação dos direitos coletivos e o
enfrentamento ao período de restauração neoliberal que estamos vivendo.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Bruno Lima Rocha - Sim, quase que um chamado de alerta para
entendermos a complexidade do momento e a diferenciação necessária entre
posicionar-se contra o golpe (pois impeachment sem crime de
responsabilidade é golpe e a meta é rasgar os direitos coletivos, a
começar pelos direitos trabalhistas) e não reproduzir o reboquismo que
levou à falta de resistência em 1964. Entendo que o pacto de classes do
lulismo é um pacto conservador e que ruiu; logo, abrem-se novas
possibilidades, mesmo dentro da base dos partidos de centro-esquerda e
dos milhões de brasileiros que se recusam tanto a apoiar ou defender um
governo indefensável — basta observar, para exemplificar, a política
indigenista! — como menos ainda aderir a uma aventura política
conservadora do tipo “revolução purpurina”, “troca colorida de regimes”
ou a palavras de ordem de tipo pensamento mágico, sem condições de
operar na realidade concreta. Vejo que é possível fazer uma profunda
crítica por esquerda e fortalecer as lutas populares de resistência
diante da retirada de direitos coletivos. O período que se avizinha é
muito difícil e para não perdermos nossas condições de vida precisaremos
de todas as forças sociais possíveis.
Comentários